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Acórdão do Bundesgerichtshof (BGH) alemão sobre o âmbito de proteção de uma marca abstrata

por Karin Grau-Kuntz

O caso

Desde 1956 a Autora comercializa na Alemanha sob a marca “Langenscheidt” dicionários bilingues, oferecendo-os ao mercado em versões impressa e eletrônica. Em 1986 ela iniciou com a comercialização de outros produtos didáticos voltados ao aprendizado de línguas estrangeiras, como cursos autodidáticos, gramáticas etc. Ocupando posição de liderança no mercado de dicionários bilingues, seus produtos são caracterizados por um fundo amarelo, sobre o qual destaca-se a letra “L” impressa em azul.

A Autora é titular do direito de marca relativo a um sinal abstrato constituído pela cor amarela (HKS5), para os produtos “dicionários bilingues em forma impressa”. O registro da cor em questão como marca foi concedido pelo DPMA – órgão alemão responsável pelos registros de marcas – em 4 de Janeiro de 2010.

A Ré, uma empresa vinculada ao grupo norte-americano Rosetta Stone Inc., oferece desde de Abril de 2010 ao mercado alemão, em caixas de papelão amarelo, onde está impresso na cor preta a marca nominativa “RosettaStone”, bem como um sinal figurativo na cor azul, cursos de idiomas estrangeiros para computadores em 33 línguas.

A Autora, entendendo que a utilização da cor amarela pela Ré nas embalagens de seus produtos violaria seu direito sobre a marca abstrata registrada composta pela cor amarela, foi a juízo requerendo que esta deixasse de comercializar seus produtos na Alemanha em embalagens na cor violadora.

A Ré, a seu turno, requereu junto ao DPMA a nulidade do registro da marca composta pela cor amarela. O pedido foi negado e também o recurso interposto restou sem sucesso. Porém, estando a questão da nulidade do registro da marca em aberto, requereu na ação movida pela Autora que o processo fosse interrompido até que houvesse uma decisão final sobre a nulidade do registro da marca.

Em primeira instância foi dado ganho de causa à Autora. Em recurso o Tribunal de Apelação manteve, no geral, o entendimento da instância inferior. Admitida a possibilidade de revisão, a Ré recorreu ao BGH (Bundesgerichtshof, Tribunal de Justiça Federal da Alemanha) que, por fim, confirmou a posição da Autora.

Argumentos do BGH

Com relação ao pedido de interrupção do processo oferecido pela Ré o BGH destacou estar no âmbito de suas competências discricionárias decidir a favor ou contra a interrupção. Uma decisão em um ou em outro sentido deve ter em conta os diversos interesses envolvidos, isto é a) o interesse da Autora em poder contar com uma decisão sobre a violação de sua marca com a devida brevidade; b) o interesse da Ré em não vir a ser condenada em um processo que tem por base uma marca que poderá ser anulada; c) o interesse geral no sentido que decisões contraditórias sejam evitadas.

Isto posto seguiu o BGH em suas considerações argumentando que a interrupção do processo seria justificada frente à forte possibilidade de que o processo de anulação do registro de marca viesse a ter sucesso. O Tribunal lembrou que no caso em tela o pedido de anulação da marca foi recusado pelo DPMA e também em fase de recurso pelo Bundespatentgericht (Corte Federal de Patentes da Alemanha), de forma que a possibilidade de sucesso do pedido pesaria menos frente a consideração dos outros interesses envolvidos. Manteve-se assim a decisão pela não interrupção do processo.

O BGH confirmou então o pressuposto que pautou a decisão do Tribunal de Apelação, no sentido de estar vinculado ao registro da marca, isto é, o Tribunal deve considerar a proteção garantida pelo registro como o ponto de partida do processo decisório.

Analisando o aspecto do emprego de cores como marca, o BGH lembrou que os consumidores geralmente não enxergam em uma cor em si considerada, i.e. é sem a adição de elementos gráficos, um sinal de origem de produtos. Isto ocorre porque cores, via de regra, não são empregadas como uma referência de origem de um produto, mas antes apenas como elemento de composição da marca (elemento decorativo). Essa regra, porém, lembrou o BGH, sofre uma exceção, que toma corpo quando os consumidores, frente aos costumes de sinalização de produtos ou serviços específicos, estão acostumados a enxergarem na cor propriamente dita uma indicação de origem do produto.

Os consumidores de dicionários bilingues estão acostumados com o uso de cores pelas empresas como referência de origem dos produtos. A Autora, com 60% do mercado, sempre utilizou a cor amarela, enquanto um concorrente com 17% do mercado utiliza para seus produtos uma determinada tonalidade verde .No mercado específico de dicionários bilingues a cor é decisiva na sinalização dos produtos.

Especificamente em relação aos produtos oferecidos ao mercado pela Autora e pela Ré, o BGH confirmou o entendimento de que a Ré empregaria a tonalidade amarela nas embalagens de seus produtos e na apresentação do material de propaganda como um sinal de origem, isto é, de forma a e por meio dela emprestar a seus produtos um caráter próprio, não a utilizando de forma secundária como, por exemplo, “pano de fundo” (leia-se como um elemento meramente decorativo), mas antes empregando-a de forma autônoma (como um sinal de origem) e, ainda, contínua, nas embalagens de produtos referentes a 33 idiomas.

Considerando todos os elementos de apresentação dos produtos da Ré, o BGH entendeu ser dada à cor amarela um destaque considerável em relação ao elemento nominativo e figurativo. Em outros termos, os elementos figurativo e nominativo não logram enfraquecer o valor da cor amarela em sua função fática como um sinal de identificação dos produtos oferecidos ao mercado pela Ré.

A tonalidade amarela nas embalagens dos produtos da Ré cria, assim, um risco de confusão em relação à marca abstrata da Autora, o que ocorre mesmo e apesar das diferenças nos tons de amarelo utilizados pela Autora e Ré.

Uma vez que o consumidor geralmente não encontra os produtos oferecidos ao mercado pela Autora e pela Ré arranjados lado a lado ele, não podendo comparar visualmente as cores de ambos, apelará à sua memória o que, tendo em conta a fraqueza da memória no que toca a lembrança de nuances de tons, transforma a diferença entre as tonalidades um fator irrelevante.

O BGH, enfrentando um argumento apresentado pela Ré, ainda destacou não ser necessário para a caracterização do emprego de uma cor como um sinal de origem (marca) que ela tenha adquirido um grau de conhecimento no mercado maior do que o padrão normal. Para estabelecer se cor é empregada como um sinal de origem (marca) é, por óbvio, necessário determinar o grau de sua força distintiva no mercado e, por certo, os consumidores verão com mais frequência um risco de confusão entre dois sinais idênticos ou semelhantes se um dos sinais for dotado de um potencial assinalador mais forte. Mas isso – lembrou o BGH – não implica em dizer que para a determinação do uso da cor como marca seja necessário que ela tenha adquirido um maior potencial de força distintiva. Determinantes aqui são os costumes dos consumidores do setor de produtos ou serviços.

Por fim, o BGH entendeu por uma considerável semelhança entre os produtos dicionários bilingues em forma impressa e programas de computador de cursos de línguas, posta a complementaridade dos produtos: dicionário bilingue, bem como gramática etc, é material complementar para o aprendizado de uma língua. Isto em conta e em consideração a apresentação dos produtos, os consumidores poderão partir do princípio que a Autora oferece sob um outro nome programas de cursos de língua ou ainda, se reconhecerem tratarem-se de e empresas distintas, presumir uma vinculação econômica entre Autora e Ré.


Comentário

O legislador europeu permite, sem a exigência de condições especiais, o registro de cores como marca. Isto quer dizer que o eventual registro de uma cor estará sujeito aos mesmos critérios gerais aplicáveis aos registros de sinais nominativos e figurativos. Nesse sentido o registro será possível quando a cor for dotada de força distintiva e quando, ao mesmo tempo, considerações relativas ao interesse geral não traduzam um obstáculo ao registro.

Na prática, porém, o registro de cores como marca não é corriqueiro, como a leitura do parágrafo anterior poderia deixar supor. Pelo contrário, ele vem sendo negado pelo Tribunal Europeu, posta a dificuldade fática de que uma cor venha a ser percebida pelos consumidores do(s) produto(s) e/ou serviço(s) como um sinal de origem.

Em outras palavras, a jurisprudência do Tribunal Europeu tem partido do princípio de que, em regra, as cores são percebidas pelo público consumidor dos produtos e/ou serviços como um acessório ou, ainda, como mero elemento de composição da marca. Registros de cores como marca constituem, assim, exceções, que só se justificam diante de circunstâncias específicas, como as presentes no caso em comento.

Outro fator que vem pesando na jurisprudência europeia contra a possibilidade prática de registro toca a consideração do interesse coletivo, no sentido de que as cores não venham a ser monopolizadas por um único agente atuante em um mercado específico (mercado da classe dos produtos/serviços). O registro vem assim sendo negado sempre que, por exemplo, a cor esteja vinculada a uma qualidade intrínseca do produto e/ou serviço, como na hipótese da cor laranja para sucos da fruta, da cor azul para produtos masculinos etc.

No âmbito desse espaço limitado pelas considerações apontadas, a apuração da fixação de uma cor no mercado como um sinal de origem do produto e/ou serviço desponta decisiva. Para este fim a realização de pesquisa de mercado é essencial, mas não determinante, posto outros fatores como o percentual de participação do produto no mercado da marca, a duração do uso, os esforços de propaganda etc. também deverem ser considerados.

No que tange a apuração da fixação da cor no mercado como um indicativo da origem de produtos e/ou serviços é interessante trazer ao conhecimento do leitor um outro caso, que teve por objeto o registro, na Alemanha, da cor vermelha para serviços bancário.[footnote]C-217/13 e C.218/13.[/footnote]Nele a pesquisa de mercado indicou um percentual de reconhecimento da cor como indicativo dos serviços oferecidos pela autora de 67, 9 %. Porém, tendo em conta que os consumidores de serviços bancários seriam mais atenciosos em relação a esse tipo de serviços – os consumidores seriam mais sensíveis em relação aos serviços bancários e assim prestariam mais atenção ao sinal que serve para indicá-los, o Tribunal incumbido com o caso entendeu que o percentual mencionado não seria alto o suficiente para permitir a conclusão de que o serviço oferecido pela autora seria reconhecido apenas pela cor vermelha. Seguindo essa linha desse raciocínio a cor vermelha cumpriria então com o papel de mero elemento de composição da marca caracterizada pela letra “S” (em branco, em um fundo vermelho). O patamar mínimo de reconhecimento no caso, deveria ser de, no mínimo, 70%.

Ao determinar um patamar percentual mínimo o Tribunal em questão postulou um critério objetivo de medida do grau de conhecimento necessário para casos deste tipo e, considerando a legalidade ou não deste tipo de critério frente ao Direito Europeu, foi proposta ao Tribunal Europeu a seguinte questão prejudicial:

[se a disposição pertinente do diploma cabível (Diretiva de Marcas)] deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma interpretação do direito nacional segundo a qual, em processo que suscitam a questão de saber se uma marca de cor sem contornos adquiriu caráter distintivo através do uso, é sempre necessário que de uma sondagem de opinião resulte um grau de reconhecimento dessa marca de pelo menos 70%”.[footnote]Número 33 do Acórdão citado[/footnote]

O Tribunal Europeu entendeu que o resultado de uma análise de mercado não é, de forma isolada, fator determinante afastando, dessa forma, a adoção de um patamar percentual mínimo como um critério objetivo de medida do grau de conhecimento do sinal.

Isto posto a questão retornou ao exame do Tribunal nacional que deverá, então, lançando mão de outros critérios que não apenas o percentual vinculado à pesquisa de mercado, determinar se a cor vermelha é percebida pelos consumidores como um sinal de origem de serviços bancários.

Voltando a ter em conta o caso dos dicionários acima apresentado, nota-se que a análise do BGH foi procedida também em consideração a outros fatores além do grau da fixação da cor no mercado como um sinal de origem, mas ainda em atenção às características peculiares de um mercado altamente especializado e a quantidade reduzido de produtos oferecidos, detalhes que afetam sobremaneira a análise dos costumes dos consumidores dos produtos da Autora.

Outro aspecto da argumentação do BGH ponto que merece destaque toca a decisão preliminar discricionária: interromper ou não interromper o processo. Tendo sido tomada a decisão de prosseguir com o processo o Tribunal esteve vinculado ao registro de marca da Autora, devendo considera-lo como líquido e certo. Não seria admissível decidir preliminarmente pelo prosseguimento do feito para, então, julgar como se o direito de marca não fosse certo.

Em conclusão e tendo em visa uma situação futura, se a possibilidade de registro de uma cor como marca abstrata no âmbito europeu é na prática limitada, o agente econômico que desde já adote uma estratégia adequada e bem desenvolvida de emprego de sua cor no mercado poderá ser um dos poucos a conseguir o registro.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Würtenberger Rechtsanwälte, Munique, Alemanha.


Foto: Karin Grau-Kuntz


ISSN 2509-5692

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