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Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia no processo T-411/14, de 24 de Fevereiro de 2016

por Karin Grau-Kuntz

O caso

Em Dezembro de 2011 a empresa The Coca-Cola Company apresentou ao Instituto de Harmonização do Mercado Interno um pedido de registro de marca tridimensional da forma de uma garrafa para as classes 6, 21 e 32 da Classificação de Nice.

Em Janeiro de 2013 o examinador do Instituto mencionado indeferiu o pedido de registro, entendendo que o sinal tridimensional seria desprovido de carácter distintivo para os produtos das classes mencionadas. Por fim, em Março de 2013, a Coca-Cola interpôs recurso da decisão do examinador, tendo sido este posteriormente negado pela Câmara de Recursos competente.

No que toca a decisão proferida a nível de recurso a Câmara competente considerou que os produtos em questão destinavam-se ao consumo corrente, visando o grande público e, dessa forma, seriam caracterizados pela produção em massa. Em consequência entendeu que o consumidor médio desses produtos não poderia ser caracterizado como particularmente atento, de forma que seria provável que tivesse uma recordação imperfeita dos produtos.

Ao examinar o sinal oferecido a registro concluiu que a soma das características que resultam na forma do recipiente não conferiria carácter distintivo ao sinal oferecido a registro, uma vez que essas características seriam comuns às formas dos produtos abrangidos nas classes 6 e 21 e ao acondicionamento desses produtos no que tange a classe 32. A Câmara de Recursos confirmou a conclusão do examinador de que a forma do sinal tridimensional não seria consideravelmente diferente das formas de base dos produtos em questão e do seu acondicionamento.

Em seguida, e considerando o argumento proposto pela empresa recorrente de que a forma em questão deveria ser compreendida como “garrafa de contornos não estriados” e que deveria ser considerada pelo público relevante como uma evolução de sua célebre garrafa emblemática com estrias, a Câmara de Recursos procedeu a uma comparação entre as duas formas de garrafas, i.e. a com estrias e a oferecida a registro.

Em conclusão entendeu que as formas de garrafas mencionadas produzem impressões globais distintas. Isto posto o público relevante não estabeleceria uma ligação imediata entre as garrafas estriadas, pela qual a Coca-Cola é conhecida no mundo inteiro, e o sinal proposto a registro, o que justificou recusar o argumento de evolução proposto pela Recorrente.

No que tocou a prova de aquisição de carácter distintivo a Câmara de Recursos manifestou dúvidas sobre a fiabilidade das sondagens apresentadas pela Recorrente. Especificamente questionou o fato da pesquisa não ter sido realizada pela conhecida empresa prestadora de serviços de análise de mercado, mas antes pelo seu antigo director, agora actuando como consultor independente na área de serviços mencionada. Ainda, entendeu que as pesquisas continham perguntas tendenciosas, que as somas dos valores apresentados não seriam corretas, que o volume de venda e de negócios oferecidos como prova de aquisição de carácter distintivo apenas forneceriam informações a respeito da actividade comercial da empresa Coca-Cola, e não a respeito da marca em si considerada, que o material publicitário apresentado abarcaria não apenas o sinal oferecido a registro, mas também outras formas de garrafas utilizadas pela empresa, incluindo a célebre garrafa estriada e as latas de refrigerante e, por fim, que o resultado da pesquisa não seria representativo para todo o território da União.

Por fim trouxe à baila o fato da garrafa desenhada na forma oferecida a registro como marca tridimensional ser oferecida ao público com uma etiqueta que contém a marca visual da Recorrente, o que reforçaria a conclusão de falta de carácter distintivo adquirido pelo uso.

O Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia

A Recorrente apresentou dois fundamentos de recurso, nomeadamente argumentou não ter a Câmara de Recursos, em conformidade com a jurisprudência consolidada, levado em conta as normas e hábitos do sector relevante e, ainda, não ter tido em adequada consideração  os elementos de prova fornecidos para comprovar ter o sinal adquirido carácter distintivo pelo uso.

No que toca o primeiro argumento lembrou que se o mercado dos produtos para os quais corresponde o pedido de registro é concorrencial e compreende numerosos operadores, então essas circunstâncias podem incitar fortemente alguns dos operadores a conceberem as embalagens de seus produtos de modo a que estas se distingam das embalagens utilizadas por outros operadores concorrentes. Agindo assim atrairiam a atenção do consumidor para que este conserve na memória os seus produtos em detrimento da atenção dedicada aos produtos dos concorrentes. Seguindo com o raciocínio afirmou que quanto mais concorrido um mercado, maior a tendência de diferenciação dos produtos por meio das embalagens. Indicando ser exactamente esta a situação do mercado de bebidas, frisou que se a forma das garrafas são funcionais – i.e. se elas são caracterizadas por um bojo e uma parte afunilada (gargalo) – suas aparências são concebidas para chamarem a atenção dos consumidores e distinguirem o produto de um produtor do dos outros. Frente a esta realidade de mercado os consumidores estariam habituados com o fato de que as formas na aparência das garrafas que se afastam de uma habitual sejam registradas como marca. A Recorrente ainda questionou o fato da Câmara de Recursos não ter procedido a uma apreciação global do sinal.

No que tocou a consideração da combinação forma da embalagem (garrafa) e marca visual (etiqueta) defendeu ter a Câmara de Recursos cometido o mesmo equívoco ocorrido em jurisprudência anterior, nomeadamente no caso Freixenet (joined Cases C-344/10 P, C-345/10 P) ao considerar que quando o produto é também distribuído sob uma marca nominativa distintiva, no caso em apreço uma etiqueta, esse fato privaria necessariamente a forma do produto de qualquer carácter distintivo. Em suas palavras essa abordagem equivaleria a considerar que nenhuma forma poderia ser distintiva, uma vez que nenhuma forma é apresentada no mercado sem uma marca verbal ou outro tipo de marca.

O Tribunal Geral, seguindo a linha da decisão da Câmara de Recursos, entendeu que o nível de atenção do público relevante é médio e que, apesar da apreciação do carácter distintivo da marca pedida importar considerá-la no seu conjunto, esse fato não seria incompatível com o exame sucessivo dos diferentes elementos que a compõem.

No caso em tela o exame da combinação dos elementos, cada um deles desprovido de carácter distintivo em relação aos produtos em questão, levou à conclusão de que o sinal oferecido a registro é, quando considerado globalmente, desprovido de carácter distintivo. Uma exceção à regra de que se as partes são desprovidas de carácter distintivo o resultado geral também o será só será possível na hipótese da combinação desses elementos ocorrer de uma forma tal que represente mais do que a soma dos elementos que a compõe, hipótese que não seria aplicável à forma proposta a registro pela Recorrente.

Enfrentando a dúvida da Câmara de Recursos quanto a fiabilidade das pesquisas, o Tribunal julgou-as infundadas. No entanto lembrou que, apesar da Câmara mencionada ter erroneamente valorado o grau de fiabilidade das pesquisas apresentadas como prova pela Recorrente, ela nem por isso recusou-as no momento de sua análise para a determinação de grau de um possível carácter distintivo adquirido pelo uso do sinal. Considerando este fato entendeu que o equívoco cometido pela Câmara de Recurso não é susceptível de afectar a legalidade da decisão impugnada.

No que tange o grau de distinção do sinal tridimensional, posto este sempre vir vinculado a uma marca visual ou sonora, o Tribunal destacou que uma marca tridimensional pode eventualmente (o grifo é meu) adquirir carácter distintivo pelo uso, mesmo que seja utilizada conjuntamente com outra marca nominativa ou figurativa. Para tanto bastaria que em consequência desse uso o público relevante viesse a efectivamente reconhecer o produto ou o serviço como de uma empresa determinada. Porém, no caso da garrafa da Recorrente o sinal tridimensional oferecido a registro não seria claramente diferenciável da marca que lhe faz parte. Pelo contrário, e tendo por base as provas oferecidas pela Recorrente, o sinal tridimensional – isto é a garrafa, não é apenas usado em conjugação com a marca visual, mas antes esta o absorve, uma vez que a silhuetas da marca tridimensional e da marca visual se sobrepõe.

No que toca o detalhe da pesquisa de mercado oferecida pela Recorrente não ter sido procedida individualmente em cada um dos Estados-membros da União, o que havia sido questionado a nível de Recurso, o Tribunal Geral lembrou que a marca tem carácter unitário e, portanto, ela deve produzir efeitos em todo o território da União. Por consequência dessa determinação nos casos que envolvem a verificação de aquisição de carácter distintivo pelo uso é necessário demonstrá-la em consideração a todo o território no qual a marca não tinha esse carácter. Se essa afirmação não implica na exigência de que a pesquisa deva ser necessariamente procedida em cada um dos Estados membros da União, a pesquisa elaborada em apenas parte dos Membros da União deverá ser procedida de tal forma que o seu resultado possa ser extrapolado para todo o território da União. Uma vez que este não foi o caso da pesquisa apresentada pela Recorrente o Tribunal Geral acatou a decisão da Câmara de Recursos, que em sua opinião agiu bem ao não aceitar o estudo como prova suficiente de que o sinal tridimensional teria adquirido carácter distintivo em toda a União para uma parte significativa do público relevante.

Em referência à informação sobre o montante do investimento em publicidade, que a Recorrente apresentou como meio de prova para a comprovação de que o sinal teria adquirido carácter distintivo pelo uso, o Tribunal Geral lembrou que este factor pode ser considerado no processo de verificação de carácter distintivo adquirido pelo uso. Especificamente, porém, os números apresentados pela Recorrente não se referiram apenas à marca pedida, mas também a outros produtos, de forma que não seriam adequados como base para conclusões no âmbito do processo decisório.

Por fim e no que toca o argumento de que os operadores em um mercado concorrido tendem a modificar a aparência de suas embalagens para distinguir seus produtos, o Tribunal Geral frisou não ser este um factor por si suficiente para conferir um caracter distintivo a marca, recusando assim a argumentação.

Diante destes fatos e argumentos o Tribunal Geral confirmou a decisão da Câmara de Recursos, negando a possibilidade de registro do sinal tridimensional por falta de carácter distintivo (motivo absoluto de recusa) e entendendo, também, não ter o sinal em questão adquirido carácter distintivo pelo uso.


Comentário

A história da garrafa do refrigerante Coca-Cola tem sua origem na preocupação em evitar imitação pelos competidores. Nesse sentido já em 1915 a empresa saiu à procura de uma produtora de vidros que fosse capaz de desenvolver uma garrafa reconhecível como a do refrigerante, seja “no escuro pelo tato ou mesmo quando em cacos no chão”[1]. Assim nasceu a emblemática garrafa estriada e, seguindo no intento de evitar a cópia, a Coca-Cola é hoje titular de diversas marcas tridimensionais na União Europeia. Porém, mesmo e apesar dessas diversas marcas tridimensionais já registradas, a jurisprudência em comentário demonstra, mais uma vez, que alcançar protecção para sinais de forma de produtos na Europa é empreitada difícil.

Exemplar no que toca um aspecto geral importante do conflito de interesses presente nas questões que envolvem o registro de marcas tridimensionais é na passagem da decisão que destaca, por um lado, o problema da competição acirrada no mercado de bebidas e, por outro lado, o aspecto funcional de garrafas. O Tribunal Geral manifestou-se de forma clara a este respeito: o argumento de competição acirrada no mercado em nada afecta o fato do sinal tridimensional, para fins de registro, dever oferecer em sua aparência mais do que o habitual. Ainda, a habitualidade do consumidor em ver formas diferentes de garrafas no âmbito do mercado concorrido não é capaz de superar a exigência de forma elaborada para além daquilo que é habitual/funcional.

De fato, o grau de carácter distintivo necessário para viabilizar o registro como marca independe do grau de competitividade do mercado. Se assim não fosse então seria possível inferir que em mercados caracterizados por média ou pouca concorrência o grau de carácter distintivo exigido aos sinais oferecidos a registro deveria ser mais alto do que o comum. O critério para a apuração do grau de distintivo deve ser procurado na própria classe do objecto cuja variação na forma se quer registrar. A funcionalidade muitas vezes limita as variações na forma, a natureza do problema aqui é, porém, circunstancial.

Nesse sentido bem acertada a posição do Tribunal Geral ao explicitar que o fato do grau de liberdade da concepção de garrafas não ser muito elevado não implica em afirmar que elas possam ser registradas apenas com base em variações mínimas ou que variações mínimas nas formas habituais sejam indicativos de grau distintivo.

Por fim e tendo em mente o intento de não extrapolar os limites de espaço de um comentário de jurisprudência, dois outros pontos da decisão em questão fazem jus a destaque.

Primeiramente e no que tangem as pesquisas de mercado, especial atenção deve ser dada à exigência de que os resultados dessas pesquisas – mesmo e apesar de não ser necessário realizá-las individualmente em cada um dos Estados Membros – possam ser extrapolados a todo o território da União. Este ser um factor a considerar em disputas futuras na Europa que envolvam este tipo de prova.

O outro aspecto que merece menção especial encontro na discussão sobre a forma de combinação da marca tridimensional com a marca visual, i.e. como esta combinação poderá ter influência na eventualidade de um registro da forma do produto como marca tridimensional. Recapitulando a posição do Tribunal Geral, um sinal tridimensional poderá adquirir carácter distintivo pelo uso independentemente da consideração da marca visual que em regra o acompanha (no caso em tela a apuração do grau distintivo adquirido pela forma da garrafa independe, em teoria, da etiqueta que contém a marca visual da empresa e que é aposta a garrafa). Isto porém não significa afirmar que a estratégia de marketing escolhida e incorporada na apresentação do produto ao público deva ou possa ser ignorada para fins da determinação do grau distintivo adquirido pelo uso.

Sob uma perspectiva prática este entendimento implica em dizer que as empresas fariam então bem em já considerar no momento de desenvolvimento da embalagem e marca do produto a estratégia de registro a ser perseguida. Deixando de lado o fato da forma proposta a registro de fato parecer habitual, no caso em tela a estratégia de marketing escolhida pela Coca-Cola transformou-se em um tiro no próprio pé no momento de tentar o registro da nova embalagem.


[1] http://www.coca-colacompany.com/history/


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Munique, Alemanha.


ISSN 2509-5692

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