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Acórdão do Tribunal de Justiça Europeu de 10 de Julho de 2014, no processo Apple Inc. contra Deutsches Patent und Markenamt

por Karin Grau-Kuntz

O caso

No ano de 2010 a empresa Apple obteve do United States Patent and Trademark Office o registro de uma marca tridimensional, que consiste na representação, por meio de um desenho colorido, das sua “lojas de referência” (em inglês flagship stores). A seguir a representação da marca, descrita pela empresa como concepção e aspecto distintivos de um estabelecimento de venda a varejo.

Acórdão do Tribunal de Justiça Europeu de 10 de Julho de 2014, no processo Apple Inc. contra Deutsches Patent und Markenamt

O registro desta marca tridimensional foi procedido para serviços da classe 35 da Classificação de Nice de Produtos e Serviços, nos seguintes termos: “serviços prestados por estabelecimentos de venda a retalho [varejo], relacionados como computadores, software para computadores, periféricos para computadores, telefones móveis, eletrônica de consumo e seus acessórios, e com demonstrações de produtos relativos aos mesmos”.
Isto feito, a Apple Inc. procedeu à extensão da proteção de sua marca tridimensional nos termos do Acordo de Madrid relativo aos Registro Internacional das Marcas. A extensão da proteção foi aceita em alguns países, enquanto em outros, como por exemplo na Alemanha, foi recusada. Por sua vez, a recusa do registro pelo órgão alemão competente deu ensejo ao acórdão em comento.

Em detalhes, em Janeiro de 2013 o Deutsches Patent und Markenamt (DPMA) recusou a extensão da proteção da marca norte americana ao território alemão, argumentando que a representação do espaço destinado à venda de produtos de uma empresa apenas seria capaz de representar um único aspecto essencial do comércio desta empresa.

Em outras palavras, mesmo que o consumidor identifique na configuração desse espaço uma indicação do valor e da categoria de preço dos produtos – e este fato pareceu certo ao órgão alemão competente – ele não compreenderia a configuração do espaço como uma indicação da origem dos produtos. Ainda, o órgão argumentou que o espaço de venda representado pelo desenho não se distinguiria de forma suficiente das lojas de outros fornecedores de produtos eletrônicos.

A empresa Apple Inc., insatisfeita com a decisão do DPMA, interpôs recurso frente ao Bundespatentgericht, i.e. o Tribunal Federal de Patentes alemão que, por sua vez, reconheceu na marca tridimensional particularidades que a distinguiriam da configuração habitual das lojas no setor respectivo. Porém, considerando que o litígio não se resumiria à questão de distinção suficiente entre lojas que oferecem produtos eletrônicos ao mercado, e tendo em conta que o caso tocava questões mais fundamentais de direito de marca, o Tribunal em questão submeteu ao Tribunal de Justiça Europeu as seguintes questões prejudiciais:

1) Deve o artigo 2 [da Diretiva 2008/95] ser interpretado no sentido de que a possibilidade de proteção da “forma [de um] produto ou da respectiva embalagem” inclui a forma em que é corporizada uma prestação de serviço?

2) Devem os artigos 2 e 3, nº 1, [da Diretiva 2008/95] ser interpretados no sentido de que um sinal que reproduz a forma em que é corporizada a prestação de serviços também é susceptível de ser registrado como marca?

3) Deve o artigo 2 [da Diretiva 2008/95] ser interpretado no sentido de que o requisito da suscetibilidade de representação gráfica é cumprido apenas pela representação por um sinal, ou mediante indicações complementares como a descrição da forma ou as dimensões absolutas, medidas em metros, ou relativas com indicações de proporções?

4) Deve o artigo 2 [da Diretiva 2008/95] ser interpretado no sentido de que o âmbito da proteção da marca para os serviços prestados no comércio a retalho também abrange os produtos produzidos pelo próprio retalhista?

Tratando da primeira questão prejudicial o Tribunal esclareceu, de plano, que as expressões “forma em que é corporizada uma prestação de serviço”, empregadas nas duas primeiras questões prejudiciais, remetem ao fato de a Apple requerer o registro de marca de um sinal constituído pela representação das suas lojas de referência para serviços, na sua opinião, da classe 35 da Classificação de Nice. Esses serviços, por sua vez, consistem em prestações que visam mover o consumidor a comprar os produtos oferecidos pela empresa.
Isto posto, e tendo as questões propostas sob uma perspectiva de seu conjunto, a essência das questões propostas esteve, na opinião do Tribunal, em determinar se os artigos 2 e 3 da Diretiva 2008/95 deveriam ser interpretados no sentido de que a representação de uma loja por meio de um desenho colorido, sem a indicação de tamanho nem de proporções, poderia ser registrada como marca para serviços que se caracterizam pelo levar o consumidor a comprar os produtos da requerente do registro. Caso a resposta foose afirmativa, então caberia responder se a “forma em que é corporizada uma prestação de serviços” pode ser equiparada a uma “forma ou embalagem” de um produto.

Seguindo com o raciocínio, o Tribunal lembrou que para ser susceptível de constituir marca nos termos do Art. 2 da Diretiva 2008/95 o objeto de um pedido deve preencher três requisitos, a saber:

– deve constituir um sinal;

– o sinal, por sua vez, deve ser suscetível de representação gráfica e, ainda

– o sinal deve ser adequado a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.

Na opinião do Tribunal, os desenhos, independentemente de virem acompanhados de indicativos de dimensões e proporções dos espaços de vendas que representam visualmente, satisfazem indiscutivelmente os dois primeiros requisitos elencados e, assim sendo, a representação gráfica que dá corpo visual à configuração de uma loja através de um conjunto contínuo de linhas, contornos e formas, pode constituir uma marca desde que – e aqui o reporte ao terceiro requisito – seja adequada a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.

Nessa linha concluiu que a “forma em que é corporizada uma prestação de serviço” é equiparada a uma “forma de embalagem” na acepção do Art. 2 da Diretiva 2008/95.

No que toca o terceiro requisito, i.e. adequação do sinal para distinguir produtos e serviços de uma empresa daqueles oferecidos por outras empresas, ele estará satisfeito quando, por exemplo, a configuração representada visualmente divergir de forma significativa da norma ou dos hábitos do setor econômico em causa.

Sob uma perspectiva prática, a adequação do sinal para distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras deve ser apurado em concreto. Nessa ocasião deve ser eliminada a hipótese do sinal ser meramente descritivo para os produtos e serviços em causa ou, ainda, a hipótese de incidência de outra razão legal de recusa de registro. Esse processo de análise concreta deve ter em conta os produtos ou serviços para o qual o registro foi pedido e, ainda, a forma como o público interessado, constituído pelo consumidor médio desses produtos ou serviços, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, percebe o sinal.

Em outras palavras, os critérios de apreciação que devem ser considerados pela autoridade competente durante o exame do caso concreto são os mesmos utilizado para a apreciação de outros tipos de sinais.

Outro ponto considerado essencial para a decisão da causa em questão disse respeito a saber se um sinal pode ser registrado para prestações de serviços que têm por fim levar o consumidor a comprar os produtos oferecidos – mas não produzidos – pela empresa requerente do registro. Trata-se aqui da categoria de marca de serviço de comércio varejista.

Nesse ponto entra em discussão jurisprudência anterior proferida pelo Tribunal de Justiça Europeu sobre a possibilidade de registro de marca para um serviço até então considerado como mera atividade secundária em relação ao oferecimento do produto ao mercado. Detalhes sobre essa discussão o leitor encontrará a seguir, no item dedicado aos comentários ao acórdão em referência.

O que interessa para o presente momento, quando o objetivo é narrar o resultado da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça Europeu, é destacar ter a empresa Apple Inc. mencionado em sua descrição de serviço relacionada ao pedido de registro de marca da representação de sua loja de referência serviço caracterizado pela realização de seminários em suas lojas de referência, voltados à demonstração de seus produtos nelas oferecidos (nomeadamente: “Serviços prestados por estabelecimentos de venda a retalho [varejo], relacionados como computadores, software para computadores, periféricos para computadores, telefones móveis, eletrônica de consumo e seus acessórios, e com demonstrações de produtos relativos aos mesmos.”). Centrando-se nesse aspecto o Tribunal lembrou que um sinal que represente a configuração de lojas de referência de um fabricante de produtos pode ser validamente registrado não apenas para esses produtos, mas também para prestações abrangidas por uma das classes da Classificação de Nice relativas aos serviços, quando estas prestações de serviços não fizerem parte integrante da colocação dos referidos produtos no mercado.

Insistindo no argumento, porque a descrição dos serviços oferecidas pela Apple abrangeu o serviço mencionado, o Tribunal entendeu não ser o caso de discussão da possibilidade de registro de uma marca de serviços de comércio varejista quando os produtos oferecidos pela requerente da marca são constituídos pelos seus próprios produtos. Exatamente por essa razão, i.e. porque a questão despontou como hipotética frente ao caso concreto em análise, o Tribunal não ofereceu resposta à quarta questão prejudicial, considerando-a inadmissível.


Comentário

Seguindo passo com a problemática mencionada ao fim do item anterior, inicio este Comentário tratando da questão da marca de serviço de comércio varejista para, posteriormente, cuidar brevemente da nova categoria europeia de marcas de representação de serviços.

Até o momento em que foi proferido o acórdão do Tribunal de Justiça Europeu no caso “Praktiker”, em 07 de Julho de 2005 (C-418/02), a prática alemã vinha sendo caracterizada pela recusa de registro de marca para o serviço de comércio varejista, uma vez que a venda de produtos era considerada como atividade secundária em relação ao próprio produto.

No caso “Otto” (BGH I ZR 293/02), por exemplo, o BGH – Tribunal Federal de Justiça alemão, decidindo se a utilização de sinais registrados como marcas de produtos apenas nas embalagens e prospectos de uma empresa de comércio varejista que exerce suas atividades por meio de catálogos (atualmente também pelo oferecimento de seus produtos na Internet), e não em produtos próprios, representaria uma utilização capaz de suprimir o risco de caducidade dos registros, cogitou e recusou a possibilidade de registro de marca de serviço de comércio varejista.

Como mencionado, esse entendimento foi superado pelo acórdão europeu no caso “Pratiker”.

Em detalhes, a empresa Praktiker Bau- und Heimwerkermärkte requereu ao órgão competente alemão o registro da marca “Praktiker” na classe 35, nos seguintes termos: serviço de „venda a retalho [varejo] de artigos de construção, de bricolagem e de jardinagem, bem como de outros bens de consumo do sector “do-it-yourself”.

Nota-se, que a exemplo do caso “Otto”, a empresa não comercializa produtos próprios marcados com o sinal em questão, mas apenas produtos de terceiros.

Por sua vez o DPMA – o órgão competente alemão – seguindo a tendência acima mencionada, indeferiu o pedido de registro da marca de serviço considerando que o conceito reivindicado de “venda a retalho [varejo]” não designa serviços independentes com um significado econômico autônomo, mas antes o serviço apenas engloba a distribuição de produtos propriamente dita. Nestas circunstâncias a proteção da marca “Praktiker” só poderia ser obtida através do pedido de registro de uma marca que abrangesse os diversos produtos comercializados pela empresa.

A empresa Praktiker Bau- und Heimwerkermärkte arguiu em recurso com a evolução econômica em uma sociedade caracterizada como “de serviços”, que pediria uma nova apreciação do comércio varejista enquanto serviço. Nesse sentido, ao invés de centrada nos critérios clássicos do preço e disponibilidade, a decisão de compra do consumidor seria cada vez mais influenciada por aspectos como, por exemplo, a seleção e agrupamento dos serviços, sua apresentação, o serviço prestado pelos vendedores, a imagem, a publicidade, a localização do estabelecimento etc. Nesse sentido e assim compreendido o serviço de comércio seria o fator determinante para a preferência do consumidor.

O Tribunal de Justiça Europeu absorveu a argumentação apresentada pela requerente do registro da marca de serviço entendendo que a atividade de comércio varejista não se esgota na mera atividade de venda, mas antes envolve uma série de outros serviços que podem ser determinantes para a escolha do consumidor. Como condição para o registro o Tribunal exigiu a determinação do segmento de produtos no âmbito do qual a atividade é prestada. Ainda, no que tange os seus efeitos, o acórdão pôs fim ao entendimento alemão, no sentido de que o serviço de comércio varejista não representaria uma atividade comercial independente.

Posteriormente, no caso “Netto” (C-420/13), o Tribunal de Justiça Europeu teve a oportunidade de decidir positivamente sobre a possibilidade de registro de marca de serviço de comércio varejista para empresa que, ao invés de produtos, comercializa serviços de terceiros. Também nesse caso as questões prejudiciais foram propostas ao Tribunal de Justiça Europeu pelo Tribunal Federal de Patentes alemão. Note-se que a empresa em questão não age, nesta hipótese, como uma mera intermediária no oferecimento de serviços de terceiros ao mercado, mas antes é ela quem contrata com o consumidor.

As possibilidades de registro de marca de serviço de comércio varejista no âmbito europeu para os casos em que o requerente da marca oferece ao mercado produtos de terceiros e, ainda, serviços de terceiros, não englobam, porém, o registro de marca de serviço para a hipótese quando os produtos/serviços oferecidos ao mercado são do próprio requerente do registro. Este fato – e agora volto a ter em foco o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça Europeu no caso “Apple Inc.” – explica o teor da quarta questão prejudicial proposta pelo Tribunal Federal de Patentes alemão, considerada por aquele primeiro, como visto, como inadmissível.

Note-se que o Tribunal de Justiça Europeu determinou ser possível o registro de um sinal que represente a configuração de lojas de referência de um fabricante de produtos não apenas para esses produtos, mas também para prestações abrangidas por uma das classes da Classificação de Nice relativas aos serviços, quando estas prestações de serviços não fizerem parte integrante da colocação dos referidos produtos no mercado (a mero título especulativo, será que uma requerente cogitaria assinalar seus produtos com o sinal que represente a configuração da loja de referência?)

Adotando uma posição diversa daqueles que tendem a ver aqui tendência em negar a possibilidade de registro de marca de serviço de comércio varejista quando os produtos/serviços oferecidos ao mercado são da própria requerente, entendo seguir indefinida a questão se a comercialização de produtos próprios caracterizaria ou não uma prestação de serviço independente. Sob uma perspectiva prática, e tendo em vista o momento do pedido de registro da marca de serviço, o valor da discussão parece questionável, pois basta que a requerente comercialize pelo menos um produto e/ou serviço de terceiro para a discussão tornar-se irrelevante.

Aliás, outra não é a situação da Apple Inc., que oferece em suas lojas não apenas seus próprios produtos, mas também aqueles de terceiros. Porém, em um momento posterior, como por exemplo no âmbito de uma discussão sobre caducidade da marca ou, ainda, na hipótese de um pedido de nulidade do registro da marca de serviço, a situação poderá ser diversa. Se assim será ou não, é tema de discussão futura.

Quanto ao segundo aspecto do acórdão em comento, o Tribunal de Justiça Europeu abriu as portas para a possibilidade de representação das lojas de referência como marca de serviço. Esse entendimento parece seguir a tendência inaugurada com o reconhecimento da possibilidade de registro de marca de serviço de comércio varejista: se o serviço é independente – pelo menos no que toca o oferecimento de produtos/ serviços de terceiros, então nada mais natural do que igualar a representação gráfica que “dá corpo” ao serviço à “vestimenta” de produtos (trade dress).

Se a representação gráfica que dá corpo visual à configuração das lojas da empresa Apple Inc. poderá de fato constituir uma marca ou não depende ainda de decisão a ser tomada pelo Tribunal Federal de Patentes alemão, quando será examinada a sua adequação para distinguir os produtos ou serviços desta empresa em relação àqueles oferecidos por outras empresas. A tendência indica no sentido de reconhecimento de carácter distintivo.

No que resta, cabe aguardar as possíveis discussões e consequências que poderão despontar frente à possibilidade de registro desta nova categoria de marca.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Würtenberger Rechtsanwälte, Munique, Alemanha.


ISSN 2509-5692

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