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UberBlack – Decisão do BGH alemão de 18 de maio de 2017, I ZR 3/16

por Karin Grau-Kuntz

As controvérsias jurídicas em torno dos serviços oferecidos pela empresa Uber continuam a ocupar o Tribunal de Justiça Europeu.

A justiça europeia, que estará decidindo em breve sobre questões prejudicias apresentadas por um tribunal espanhol envolvendo os serviços “UberPop” (veja aqui), deverá, agora, decidir sobre questões prejudiciais apresentadas pelo BGH alemão, concernentes aos serviços “UberBlack”.

Os serviços “UberBlack”

A empresa Uber, com sede nos Países Baixos, disponibiliza em algumas cidades da Alemanha um aplicativo móvel denominado “UberBlack”, que permite ao usuário contratar serviços de carros de aluguel com motorista. Para este fim ela coopera com empresas de aluguel de veículos locais.

Quando o usuário utiliza o aplicativo “UberBlack”, seu pedido é encaminhado à Uber que, a seguir, informa ao motorista do veículo de aluguel mais próximo do passageiro sobre a possibilidade de realizar o serviço de transporte solicitado. Estando disponível o motorista aceita a corrida. Paralelamente à comunicação entre a empresa Uber e o motorista do veículo de aluguel é enviado um E-mail à empresa do motorista, informando que o serviço deverá ser realizado em atenção aos termos e condições determinados pela Uber e, ainda, que o preço deverá ser pago via aplicativo móvel.

O caso

Uma empresa de táxi de Berlim, doravante denominada Autora, requereu em juízo a proibição do aplicativo móvel “UberBlack” para a intermediação de serviços de transporte de passageiros naquela cidade. A legislação alemã relevante ao caso é a Personenbeförderungsgesetz – PBefG, que regula os serviços de transporte de passageiros.

Em primeira instância o Landgericht de Berlim deu ganho de causa à Autora. No mesmo sentido foi decidida a apelação proposta pela empresa Uber, doravante denominada Ré. Em sede de revisão o BGH entendeu acertado invocar o Tribunal de Justiça Europeu, propondo duas questões prejudiciais, pois que a resolução do problema proposto dependeria de esclarecimentos que tocam o âmbito do direito europeu.

Lançando os olhos à decisão proferida em segunda instância, o Tribunal em questão, ao interpretar a PBefG, destacou ter o legislador alemão considerado a contratação direta de serviços de transporte de passageiros, i.e., a contratação que pressupõe o contato entre passageiro e motorista, como uma característica determinante dos serviços de transporte de táxi. Ainda, frisou que nos termos da lei aplicável o motorista de um carro de aluguel, diferentemente do motorista de táxi, não só está obrigado a retornar, após ter completado o serviço de transporte do passageiro, à sede de sua empresa, mas que também, sob uma perspectiva técnica, permanece vinculado àquela.

Em miúdos, o direito alemão obriga o motorista de veículo de aluguel a, ao completar um serviço de transporte de passageiro, retornar à sede de sua empresa, não podendo, como é permitido ao motorista de táxi, circular pelas ruas à espera do contato de um passageiro. A exigência de retorno à sede é excepcionada quando o motorista, no curso da prestação do serviço de transporte ou durante o percurso de retorno à sede de sua empresa, seja contactado por esta última quanto à contratação de um novo serviço de transporte (vinculação técnica, pois que o contato depende de aparelhos adequados a este fim, como celulares ou rádio).

Decisivo ao raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de segunda instância é, assim, a forma de contato com o passageiro. Uma vez que o contato direto entre passageiro e motorista é característica essencial do serviço de táxi, o motorista de veículo de aluguel não só está vinculado à regra de retorno à sede, mas, ainda, o contato com o passageiro deve, necessariamente, ocorrer por intermediação da sede de sua empresa, isto é, por meio de telefonema ou E-mail direcionado direto à sede ou por meio de uma notícia deixada gravada em secretária eletrônica ali localizada.

Isto determinado o Tribunal passou, então, a considerar a forma de funcionamento do aplicativo móvel “UberBlack” que, no seu entender, possibilita o contato direto entre passageiro e motorista de aluguel. Ocorre, porém, que tal contato direto, como afirmado, é prerrogativa das empresas de táxi, de modo que estaria caracterizada concorrência desleal por parte da empresa Uber e das de aluguel de veículos que com ela cooperam.

Revendo o acórdão proferido em segunda instância o BGH confirmou a interpretação do Tribunal no que toca a PBefG, destacando ser determinante ao caso a regra de que a contratação dos serviços de transporte seja feita por intermédio da sede da empresa que oferece os veículos de aluguel (veja aqui o Acórdão). Esta exigência legal, bem como a regra manifesta na obrigação de retorno do motorista à sede da empresa após cumprido o serviço de transporte, reside na preocupação de evitar que os passageiros confundam os carros de aluguel com os carros de empresas de táxi, pois que a prestação do serviço de táxi é vinculada a uma série de exigências, como adoção de tarifa pré-estipulada, obrigação de contrair etc.

Notando que com o uso do aplicativo “UberBlack” motorista e sede são informados concomitantemente sobre o pedido de serviço, a violação da legislação nacional aplicável sobre transporte de passageiros seria evidente.

Tendo em conta o direito europeu o BGH trouxe então à baila uma questão central que envolve as discussões sobre os serviços oferecidos pela empresa Uber na Europa, nomeadamente, se se trata de serviços de transporte de passageiros, ou não. Como já mencionado em comentário anterior (veja aqui), há de se considerar que a) a liberdade de prestação de serviços é um dos alicerces da União Europeia e b) que a competência de regulamentação de alguns setores econômicos, como o de transporte de passageiros, persiste, apesar da máxima unionista da liberdade de prestação de serviços, no âmbito dos Estados-Membros.

Isto posto o Tribunal postulou ser necessário esclarecer se os serviços prestados pela empresa Uber seriam de intermediação de serviços oferecidos por terceiros, como ocorre com as plataformas que intermediam quartos de hotéis ou passagens de avião, ou se seriam serviços de transporte urbano. Se de transporte urbano os serviços seriam regulados por leis nacionais, no caso em tela pela PBefG, na interpretação oferecida pelo Tribunal de segunda instância, confirmada em revisão pelo BGH.

Tendo esta constelação em conta o BGH formulou sua primeira questão prejudicial requerendo um posicionamento quanto à natureza dos serviços prestados pela empresa Uber por meio do aplicativo “UberBlack”.

Neste contexto recordou, por fim, que os serviços oferecidos pelas empresas de aluguel são denominados em propaganda como da “Uber”, sendo a própria empresa quem determina os preços das corridas. Ainda, é ela também a responsável pelo processo de pagamento pelo serviço prestado e autora das campanhas de desconto. No que toca a relação com as empresas de aluguel de veículos mereceu destaque o fato das condições que dão forma ao serviço de cooperação serem determinadas pela Ré.

A segunda questão prejudicial apresentada ao Tribunal Europeu está vinculada à possibilidade de que a primeira questão prejudicial venha a ser respondida de forma negativa, i.e., caso o Tribunal Europeu entenda que os serviços prestados pela empresa Uber não são de transporte urbano, o que excluiria a aplicação da PBefG. Frente a esta hipótese o BGH questionou se, tendo em conta as peculiaridades do caso e, ainda, o objetivo de garantir a capacidade concorrencial e funcional dos serviços de transporte de táxis, seria possível, em consideração ao Art 16 da Directiva 2006/123/CE, especificamente no que toca o primado de proteção da ordem pública, proibir os serviços oferecidos por meio do aplicativo móvel “UberBlack”.

Nesse contexto é importante ter em mente as regras de não-discriminação, necessidade e proporcionalidade, como dispostas no Nr. 1 do Art. 16 da Directiva citada, bem como a exceção disposta o Nr. 3.

Artigo 16.

Liberdade de prestação de serviços

1. Os Estados-Membros devem respeitar o direito de os prestadores prestarem serviços num Estado-Membro diferente daquele em que se encontram estabelecidos.

O Estado-Membro em que o serviço é prestado deve assegurar o livre acesso e exercício da actividade no sector dos serviços no seu território.

Os Estados-Membros não devem condicionar o acesso ou o exercício de actividades no sector dos serviços no seu território ao cumprimento de qualquer requisito que não respeite os seguintes princípios:

a) Não discriminação: o requisito não pode ser directa ou indirectamente discriminatório em razão da nacionalidade ou, no que respeita às pessoas colectivas, em razão do Estado-Membro em que estão estabelecidas;

b) Necessidade: o requisito tem que ser justificado por razões de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública ou de protecção do ambiente;

c) Proporcionalidade: o requisito tem que ser adequado para garantir a consecução do objectivo prosseguido, não podendo ir além do necessário para o atingir.

(…)

3. O Estado-Membro para onde o prestador se desloca não está impedido de impor requisitos para o exercício de uma actividade de serviços quando esses requisitos sejam justificados por razões de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública ou de protecção do ambiente, em conformidade com o n.o 1.

Recorrendo à jurisprudência proferida pelo Tribunal Constitucional em um caso onde foi questionada a possibilidade de regulação das atividades de empresas de táxi e de aluguel de veículos/motoristas, o BGH destacou que a legislação pertinente, ao regular o setor, visa garantir o bom funcionamento do serviço de táxis, caracterizado, a seu turno, como serviço de utilidade pública (BVerfGE 81, 70, 84 ff, 94 ff).

Em miúdos, por trás da legislação que regula o setor há o interesse legítimo de oferecer ao público por uma tarifa pré-determinada serviços de transporte adequados às suas necessidades individuais, pautados por um dever de contratar. Em contrapartida a este tipo de serviço, leia-se aos serviços de táxi, os serviços de aluguel de carros e motoristas não estão vinculados a obrigação de contratar e a tarifa pré-determinada, de modo que os agentes económicos podem recusar uma corrida ou determinar a tarifa livremente, adequando-a à demanda.

O objetivo da legislação pertinente, enfatizou o BGH, não é regulamentar a atuação econômica no setor. Ao contrário, por trás dela reside a preocupação com o passageiro.

Em outras palavras, o que se pretende é garantir que, por exemplo, pessoas idosas, deficientes e doentes sejam transportadas, mesmo que por percursos não atrativos, por um preço pré-determinado. É neste sentido, como reconheceu a Corte Constitucional, que o serviço de táxi é caracterizado como de interesse público.

Na hipótese de o Tribunal Europeu concluir que os serviços prestados pela empresa Uber não são de transporte, caberá a ele esclarecer, como quer o BGH, se o interesse público vinculado aos serviços de táxi poderia ser entendido como “razão de ordem pública” nos termos do Nr. 3 do Art. 16 da Directiva 2006/123/CE, o que justificaria proibir os serviços prestados por meio do aplicativo “UberBlack” na Alemanha.

Por fim o BGH destacou que a eventual proibição do modelo de negócio levado a cabo via aplicativo móvel “UberBlack” não significaria estar o agente econômico impossibilitado de atuar no mercado alemão. A intermediação de serviços de motorista e veículos de aluguel via aplicativo móvel continuaria sendo possível, bastando à empresa Uber garantir que as encomendas de serviços sejam dirigidas primeiramente à sede das empresas de aluguel e que estas, bem como os seus motoristas, respeitem as normas que regulam suas atividades como, por exemplo, a obrigação de retornar à sede.

Sob uma perspectiva concorrencial a proibição do aplicativo móvel na forma como hoje é oferecido impediria a empresa Uber de gozar das vantagens garantidas às empresas de táxi (por exemplo o contato direto com o passageiro), sem que concomitantemente tenha de se submeter às “desvantagens” a que estão submetidos os motoristas de táxi (obrigação de contratar, tarifa pré-determinada). Não se trata, assim, ressaltou o BGH, de proibição dirigida contra tecnologias inovadoras em si consideradas.

Tendo em conta o desenvolvimento da controvérsia em torno do caso UberPop (vide especialmente a Opinião do advogado-geral Maciej Szpunar no caso Asociación Profesional Élite Taxi contra Uber Systems Spain, S.L.), é possível prever uma decisão do Tribunal Europeu no sentido de que empresa Uber oferece serviços de transporte, de modo que a resposta à segunda questão prejudicial restará desnecessária. Se assim não ocorrer, a justiça europeia deverá enfrentar uma questão sem dúvida muito interessante, que merecerá ser noticiada. Resta agora aguardar o desenvolvimento dos casos.


Karin Grau-Kuntz, doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU),  Munique, Alemanha.


ISSN 2509-5692

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