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A “parábola dos homens cegos e o elefante” e a proposta de norma que introduz o exame simplificado de patentes

por Karin Grau-Kuntz

“Um grupo de homens cegos soube que um estranho animal, chamado elefante, tinha sido levado até à cidade, mas nenhum deles conhecia a sua forma. Cheios de curiosidade, disseram: “Temos que o examinar através do toque”. Assim, foram à sua procura, e quando o encontraram começaram a tocar-lhe. O primeiro deles, cuja mão tocou no tronco, disse: “Este ser é como um tubo de drenagem”. Para outro dos cegos, que tocou na orelha do elefante, pareceu-lhe um tipo de leque. Um outro, que mexeu nas pernas, afirmou: “A forma do elefante parece um pilar”. E aquele que colocou a sua mão no seu dorso, disse: “De facto, este elefante parece um trono”. Como se pode ver, cada um deste homens percebeu um aspecto verdadeiro ao examinar o elefante. Nenhum deles ficou longe da verdadeira descrição do animal. No entanto, eles ficaram aquém de perceber plenamente a verdadeira aparência do elefante.” (texto da parábola como citado no artigo sobre a Anekantavada na enciclopédia digital Wikipedia – vide aqui)

Para superar o problema do backlog, isto é, do acúmulo e consequente atraso nos exames de pedidos de patentes, o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) e o MDIC (Ministério de Indústria e Comércio Exterior) apresentaram uma proposta de norma que introduz a possibilidade de concessão de patentes sem exame de mérito.

Sem desmerecer o esforço em procurar uma solução para um problema preocupante, sob uma perspectiva administrativa-regulatória a solução proposta é simplória; o excesso de trabalho é combatido pela não realização do trabalho, no caso do múnus constitucional do serviço público. Com exceção dos pedidos de patente de teor farmacêutico, todos os outros serão, a princípio, concedidos sumariamente.

Este tipo de solução administrativa dispensa qualquer comentário. Para criticá-lo basta ter em mente as consequências de uma medida deste tipo na iniciativa privada, sendo suficiente imaginar o manutensor que combate o acúmulo de trabalho deixando de proceder com o serviço de manutenção, apenas emitindo o certificado que comprova a realização do serviço.

Sob a perspectiva jurídica, a proposta de norma suscita a “parábola dos homens cegos e do elefante”, pois que envolve uma compreensão do direito de patente que provoca a lembrança da descrição da aparência do animal na forma de leque, como aquela oferecida pelo homem que, na parábola, apalpa uma orelha, ou na forma de trono, na descrição oferecida pelo homem que tateia o dorso do elefante.

Efetivamente, pela ótica limitada adotada na proposta o direito de patente se resumiria à relação inventor-invento. Toma-se nela a terminologia do Art. 5º XXIX da Constituição do Brasil em sua acepção medieval; como privilégio a gênese e legitimação do direito de patente repousaria na pessoa do inventor, enquanto à autarquia seria permitido premiar o inventor com uma exclusividade independente de seu mérito.

Compreender o equívoco por trás da proposta de norma em análise (e a amplitude de suas consequências jurídicas) pressupõe, antes de mais, assimilar o direito de patente em todos os seus aspectos.

O objeto do direito de patente é o invento industrial. A seu turno o invento industrial é a solução técnica voltada à resolução de um problema técnico que, concomitantemente, satisfaz os requisitos legais da novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (vide art. 8 Lei 9.279/96 – LPI).

A solução técnica para um problema técnico será dotada de novidade quando não tenha sido antecipada de forma integral por um único documento do estado da técnica.

O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data do depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio.

A solução técnica para o problema técnico será dotada de atividade inventiva quando, tendo em conta o estado da técnica, não decorra de maneira evidente ou óbvia para um técnico no assunto.

Por fim, a solução técnica para o problema técnico será dotada de aplicação industrial se puder ser fabricada ou utilizada industrialmente.

No que toca seu conteúdo o direito de patente é caracterizado pela garantia ao inventor/titular — o sujeito do direito — de um privilégio exclusivo temporário (vide Art. 5, XXIX, Constituição do Brasil), consistindo em direitos garantidos por um lapso de tempo determinado (artigo 40 da LPI)  de vedação a terceiros quanto à exploração econômica exclusiva do invento (art. 42 da LPI) e de obter  de obter indenização pela sua exploração econômica indevida.

Tendo em conta sua manifestação como direito de vedação a terceiros quanto à exploração econômica exclusiva e direito de obter indenização pela exploração econômica indevida do invento (doravante “direito exclusivo”), o direito de patente está intrinsecamente vinculado aos mercados e, consequentemente, às relações de concorrência. Sua natureza é, assim, concorrencial.

Sob a perspectiva dos mercados, o direito de patente apresenta-se como uma vantagem concorrencial temporalmente limitada, garantida ao inventor do invento industrial em relação aos seus concorrentes. A vantagem concorrencial desdobra seus efeitos no mercado.

O mercado, por sua vez, implica na pluralidade de agentes econômicos. Estes, a seu turno, também são titulares de direitos concorrenciais (livre iniciativa, implicando em liberdade de concorrência etc.).

Isto posto e para além da perspectiva parcial do cego na parábola do elefante, o direito de patente não se resume, então, apenas na garantia de uma vantagem concorrencial ao inventor/titular do direito. Ao contrário, e sob a perspectiva dos agentes econômicos que atuam no mesmo mercado do inventor/titular do direito, ele implica em uma desvantagem concorrencial, impactando, de forma imediata e frontal, não apenas os direitos concorrenciais individuais desses últimos, mas também, e especialmente, o primado da livre concorrência.

Delineado o antagonismo de interesses intrínseco ao direito de patente cabe, então, questionar a razão que levou o legislador a garantir uma exclusividade concorrencial a um agente econômico em detrimento a outros e, ainda, em detrimento à própria estrutura de mercado.

Para a surpresa do cego que, como na parábola, descreve o elefante como orelha ou perna, a razão da garantia não é encontrada na pessoa do inventor (e muito menos no montante de capital que eventualmente investiu no desenvolvimento do invento ou na quantidade de testes que porventura realizou no aperfeiçoamento de sua solução técnica), mas na noção de contribuição tecnológica, na obrigação de resultado imposta pela legalidade constitucional.

Inserida no contexto do direito de patente, a noção de contribuição tecnológica tem o condão de ordenar os interesses antagônicos mencionados em uma relação de “toma lá, dá cá”, legitimando a vantagem exclusiva garantida ao inventor do invento industrial frente aos direitos de seus concorrentes e, o mais importante, frente ao modelo de economia de mercado. A contribuição tecnológica desponta, assim, como o justo meio, o ponto de equilíbrio, o músculo cardíaco e propulsor do direito de patente.

Como afirmado, a vantagem concorrencial garantida ao inventor (i.e., o direito exclusivo) representa, sob a perspectiva do concorrente e do modelo econômico pautado pela liberdade de concorrência, uma desvantagem imediata. Porém, trazendo ao bojo do raciocínio a noção de contribuição tecnológica, a vantagem concorrencial limitada no tempo garantida ao inventor/titular do direito resta vinculada ao fomento do avanço tecnológico, resultando em incremento do bem-estar social. Isto é assim porque a contribuição tecnológica plasmada no invento é incorporada pela sociedade (leia-se ao estado da técnica), acarretando o desenvolvimento do futuro domínio público e, ainda, servindo como estímulo aos concorrentes a tentarem superar (a tornar obsoleta) a solução proposta pelo titular do direito de patente com uma nova e melhor invenção, o que faria deles também inventores e, consequentemente, também titulares de vantagem concorrencial (direito de patente). Esse processo de incentivo dos concorrentes, já denominado em outra ocasião como de concorrência de superação inovadora, implica, por fim, no incremento da qualidade das relações de concorrência.

Com a introdução da noção de contribuição tecnológica o direito de patente ganhou, então, contornos de via de mão dupla: o direito exclusivo garantido ao inventor e as liberdades garantidas nos mercados passam a interagir e a possibilidade de deslocamento em uma direção implicará em deslocamento em direção contrária na via ao lado. Onde há uma vantagem à direita, haverá uma desvantagem à esquerda e vice-versa.

Em representação esquemática, a dinâmica do direito de patente apresenta-se como a seguir:

Titular da patente Sociedade
(+) direito exclusivo (vantagem concorrencial) (-) liberdade de concorrência, liberdade de iniciativa
(-) cumprimento dos pressupostos de condição de concessão da patente (= contribuição tecnológica) (+) enriquecimento do estado da técnica, incentivo à concorrência de superação etc.

Compreendida a complexidade do instituto jurídico caberá, antes de adentrar pela crítica à proposição legiferante de ‘exame simplificado`, demonstrar o que ocorre quando a vantagem concorrencial é garantida em relação a uma solução técnica que não corresponde a uma contribuição tecnológica, i.e., a uma solução técnica que não seja nova, dotada de atividade inventiva e aplicação industrial. Nesse caso a relação de “toma lá, dá cá” será afetada, o ponteiro da balança indicará uma situação de desequilíbrio às custas dos direitos dos concorrentes e do mercado como instituição jurídica e não será possível legitimar a vantagem concorrencial, seja sob a perspectiva jurídica, econômica ou social.

De forma esquemática a situação desequilibrada assim se apresenta:

Titular da patente Sociedade
(+) direito exclusivo (vantagem concorrencial) (-) liberdade de concorrência, liberdade de iniciativa
(+) não cumprimento de ou dos pressupostos (s) para a concessão da patente (contribuição tecnológica) (-) não há enriquecimento do estado da técnica e incentivo à concorrência de superação etc.

Recorda-se, neste contexto, o disposto no preceito constitucional pertinente (Art. 5, XXIX): o privilégio temporário é garantido tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Uma patente que não corresponda a uma contribuição tecnológica não é, evidentemente, capaz de satisfazer o interesse social e de fomentar o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Seria a ausência de sua raison d’être (razão de ser).

De acordo com as estatísticas apresentadas para justificar a proposta em crítica, no fim do mês de junho de 2017, 231.184 pedidos aguardavam exame no INPI (veja a Justificativa do INPI). Ainda, apesar de que de forma não vinculada à proposta de norma em questão, é a própria Autarquia quem fornece estatísticas relacionadas aos números de pedidos de patente apresentados e o número de pedidos concedidos. Nessa linha informa que no período de 2000 a 2012 foram recebidos cerca de 320.000 pedidos de patentes, dos quais 86% eram de patentes de invenção, 13,5% de modelos de utilidade e 0,5% de certificados de adição (veja aqui).

Com relação aos 275.200 pedidos de patente de invenção (86% de 320.000) foram concedidas, entre 2000 e 2012, aproximadamente 42.000 patentes, o que corresponde a um percentual um pouco maior do que 13% dos pedidos apresentados. Na contramão, a concessão de 13% implica na não concessão de 87% dos pedidos.

Mesmo tendo em conta que parte dos pedidos não tenham sido recusados na fase de exame dos pressupostos legais (i.e., na fase de aferição da contribuição tecnológica), a projeção desses números aos pedidos acumulados no INPI, aguardando exame técnico, permite concluir ser, no mínimo, considerável o número de pedidos que não implicam em qualquer contribuição tecnológica e, assim, que não fazem jus à concessão de um direito exclusivo.

Considere-se a seguir a possibilidade destes pedidos de patente, que não implicam em qualquer contribuição tecnológica, virem a ser concedidos por meio do tal exame simplificado (leia-se, sumário, automático) e, ademais, o papel da contribuição tecnológica como a contrapartida da garantia do privilégio exclusivo, e o potencial daninho da proposta de norma resta delineado em cores vivas.

Efetivamente, no passo da insensatez jurídica que se aventa na proposta de norma em questão, pretende-se resolver o problema do backlog às custas de inundar (inflacionar) o mercado com cartas patentes que, não correspondendo a uma contribuição tecnológica, terão sido garantidas na contramão do que dispõe o Art. 5 XXIX da Constituição brasileira, não atendendo o interesse social e desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Na perspectiva do homem cego da parábola, para o qual a aparência do elefante se reduz ao que a orelha ou pata representam, a proposta viola, ainda, as disposições da Lei 9279/96 (Lei de Propriedade Industrial), pois que desloca o critério de concessão do privilégio exclusivo, que repousa na aferição da contribuição tecnológica, para o mero ato formal (carimbo) de depósito do pedido. Fere, ademais, o artigo 170 da Constituição brasileira, além de afrontar interesses de terceiros concorrentes do titular do direito de patente e dos consumidores em geral. Erode, por fim, a legitimação do privilégio exclusivo, pois que a concessão de patente que não corresponde a uma contribuição tecnológica implica em premiação indevida e decréscimo na qualidade das relações concorrenciais.

Sem que com isto se tenham esgotado as críticas possíveis à proposta de norma do INPI, o que se reserva para uma outra ocasião, a posição pessoal contrária à possibilidade de exame simplificado resta, neste passo, evidente, decisiva e justificada. Mas não seria adequado deixar de ainda mencionar um aspecto adicional relevante, vinculado à validade jurídica de uma carta-patente eventualmente concedida sem análise de contribuição tecnológica.

Considerando o sistema de patente suíço como exemplo, onde é possível a concessão de patente sem que seja procedido um exame dos requisitos de patenteabilidade — paradigma este, que nos termos de declaração do Sr. Presidente do INPI frente aos Senado (vide aqui) teria servido de modelo para a proposta de norma em crítica —, destaca-se que a presunção de validade de uma patente concedida sem exame naquele país não corresponde, por razões evidentes, àquela das patentes concedidas com exame de mérito. Nesse sentido é preciso frisar a crítica do professor suíço ADDOR, lembrando que o registro da patente suíço nada diz em relação à validade da patente, o que implica em insegurança jurídica e aumento dos custos de transações (vide aqui, página 2)

Ademais, nota-se que enquanto o sistema suíço serve de modelo para o Brasil, na Suíça aventa-se no momento a alteração do sistema com a vinculação de concessão de patente à realização de prévio exame de mérito.

Uma vez que a perda de valor jurídico no que tange à presunção de validade é uma consequência óbvia e direta da concessão de patente sem a realização prévia de exame que comprove a contribuição tecnológica, outra não seria a situação das patentes abarcadas pela proposta de norma em crítica, pressupondo, evidentemente, que fosse ela juridicamente viável.

Efetivamente, é incerto até que ponto os potenciais usuários do sistema de exame simplificado proposto estariam conscientes deste detalhe importante. A suspeita é que estejam apoiando a proposta induzidos por um equívoco, por uma assimetria informacional, isto é, crendo que a carta-patente emitida por meio de exame simplificado, sem aferição da contribuição tecnológica, teria o mesmo valor jurídico daquela emitida com avaliação de mérito. Não sendo esse o caso, mata-se qualquer pretensão de tutelas de urgência por contrafação, quando o titular precisar buscar enforcement de sua propriedade vilipendiada, pois que o título que terá em mãos se assemelha a um mero papel carimbado.

Em síntese, em conjunto com a tática de resolver o problema do excesso de trabalho pela não realização do trabalho e de transformar o requisito material de patenteabilidade (aferição da contribuição tecnológica) a uma ficção formal (o depósito de patente), a proposta culmina oferecendo aos depositantes títulos de patente ocos, seguindo aqui com a melhor tradição brasileira de produção de medidas voltadas para inglês ver (veja aqui a origem da expressão).

Pobre do cidadão brasileiro que pagará o “pato” pela pata, orelha e dorso deste “elefante branco”, deste arranjo paliativo que foi, curiosamente, batizado de “política pública”.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Munique, Alemanha.


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ISSN 2509-5692

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