[Eros Roberto Grau]
A Consulente encaminhou-me a seguinte Consulta:
“Em maio de 2021 foi julgada no STF ação acerca do prazo de validade das patentes de invenção no Brasil (ADI 5529).
Essa decisão afetou diversas patentes no país, sobretudo patentes farmacêuticas que tiveram seu prazo de vigência reduzido retroativamente. Por conta dessa situação alguns titulares de patente ajuizaram ações contra o INPI buscando ser compensados pelos atrasos da autarquia no exame e concessão dessas patentes. O pedido de compensação, no entanto, não é monetário. Esses titulares requerem a extensão do prazo de vigência de suas patentes.
Ações que buscam a ampliação do prazo de patentes não estariam de acordo com a recente decisão do STF na ADI 5529, causam insegurança jurídica e o eventual ajuste na vigência dessas patentes pode retardar o ingresso de medicamentos genéricos no mercado.
(…)
Em anexo à presente consulta encontram-se cópias das peças processuais relativas ao referido processo e a outras ações que tratam da mesma matéria, as quais expõem o quadro dos fatos e normativo a considerar-se no encaminhamento das respostas a serem conferidas aos quesitos em seguida dispostos:
1. Considerando a decisão proferida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal na ADI n. 5.529/DF, que declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único, do artigo 40, da Lei n. 9.279 de 1996 (Lei da Propriedade Industrial – LPI), existe atualmente previsão legal para a extensão do prazo de vigência de patentes no ordenamento jurídico brasileiro e se seria possível a concessão dessas extensões pela via judicial?
2. O pedido de extensão casuístico e individualizado do prazo de vigência de patente, formulado pela titular no presente caso, acarretaria os mesmos problemas de insegurança jurídica apontados pelo Eg. STF na ADI n. 5.529/DF como decorrentes da prorrogação dita ‘automática’ do artigo 40, parágrafo único, da LPI, tais como a incerteza e a imprevisibilidade acerca da data de expiração das patentes?
3. A eventual mora do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em analisar e conceder pedido de patente justificaria a extensão do prazo de vigência da patente como forma de compensação ao titular ou esse remédio seria inadequado à luz do artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil?
4. A menção a mecanismos de direito estrangeiro que estabelecem a possibilidade de extensão do prazo de vigência de patentes, feita pelo Eminente Ministro Relator Dias Toffoli no voto condutor da ADI n. 5.529/DF, autorizaria a concessão dessas extensões pela via judicial na ausência de previsão legal a respeito no Brasil ou essa menção não teria passado de mero obiter dictum?
5. Há lacuna a ser suprida no ordenamento jurídico brasileiro acerca do prazo de vigência de patentes de invenção?
6. É possível estender o prazo de vigência de patente já expirada, isto é, que já se encontra em domínio público por força da decisão vinculante do Eg. STF na ADI n. 5.529/DF?
7. Considerando os termos da decisão da ADI n. 5.529/DF, o prazo de vinte anos de proteção concedido pelo artigo 40, caput, da LPI seria considerado suficiente para assegurar os fins a que a legislação de propriedade intelectual se propõe; mais: o ordenamento jurídico resguardaria os seus interesses antes da concessão da patente, conferindo-lhe um conjunto relevante de direitos desde a data do depósito do pedido?”.
Parecer
01. O encaminhamento das respostas aos quesitos propostos na consulta reclama exposição introdutória a respeito da legislação vigente e da interpretação e aplicação do direito. A seguir deitarei atenção ao caráter temporário das patentes, à retroatividade do direito de patente e aos fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 5.529. E mais, tratarei das características dos sistemas internacionais de ajustamento de vigência das patentes e da responsabilidade objetiva do Estado.
[a legislação]
02. Assim dispõe o artigo 5 º, XXIX da Constituição do Brasil:
Artigo 5º, XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
Quanto ao privilégio constitucionalmente garantido, o artigo 40 da lei 9.279/96 (LPI) define o prazo de vigência das patentes no direito brasileiro:
Artigo 40. A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito.
Assim dispunha seu revogado parágrafo único:
Parágrafo único. O prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5.529/DF, relator o Ministro Dias Toffoli, declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI, com efeitos ex nunc, a partir da publicação da ata desse julgamento, que ocorreu em 13 de maio de 2021. No que tange às patentes farmacêuticas determinou a aplicação de efeitos retroativos e imediatos, ex tunc.
Em razão dessa declaração de inconstitucionalidade o parágrafo único do artigo 40 da LPI foi excluído do ordenamento jurídico, de sorte que a única referência legal a termo de vigência resta restrita ao seu caput.
As respostas a serem dadas aos quesitos primeiro e quinto propostos na consulta que me foi apresentada são evidentes. Sendo o prazo de vigência de patente no direito brasileiro regido unicamente pelo artigo 40 da LPI, nele não há previsão legal de extensão de prazo ou lacuna atinente a termo de duração das patentes de invenção.
[a interpretação e a aplicação do direito]
03. Tenho reiteradamente afirmado[1] que não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. Não se interpretam textos de direito isoladamente, mas sim o direito no seu todo.
A interpretação de cada texto normativo impõe ao intérprete, em qualquer circunstância, caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele até a Constituição, texto que há de ser interpretado no quadro da totalidade normativa constitucional.
Texto e norma não se identificam. As normas resultam da interpretação e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, um conjunto de normas. O conjunto de textos é ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, de normas potenciais. O significado — a norma — é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete.
A interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos dos textos, meio através do qual buscamos as normas neles contidas.
04. A partir daí há de ser feita a leitura do quanto dispõe o artigo 5º, XXIX da Constituição do Brasil conferindo proteção constitucional ao titular de patente.
Embora o preceito disponha que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” não visa unicamente a proteção do interesse individual do inventor, mas também a estimulação da inovação tecnológica e do desenvolvimento econômico. Em suma, visando incrementar o bem-estar social. Assim o faz assegurando um privilégio ao agente econômico que assume o risco de investir em inovação.
05. Os contornos desse privilégio assegurado no artigo 5º, XXIX da nossa Constituição foram determinados pelo legislador ordinário como direito exclusivo de exploração econômica da invenção. Como direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos o invento e direito de obter compensação pela exploração econômica indevida da invenção (artigos 42 e 44 da LPI).
O mercado é instituição jurídica constituída pelo direito posto pelo Estado. A noção de mercado como atividade — conjunto de operações econômicas e modelo de trocas, conjunto de contratos, convenções e transações relativas a bens ou operações realizadas no lugar/mercado — pressupõe a livre concorrência.
06. A disciplina jurídica das patentes é caracterizada por uma troca de valores. A garantia de um direito exclusivo incentiva os agentes econômicos a assumirem o risco vinculado à investimentos em inovação. O incentivo na forma de um direito exclusivo implica em custo social considerável, seja no que toca aos interesses dos agentes econômicos concorrentes ou à sociedade em seu todo.
Em outras palavras, o direito exclusivo garantido por um lado limita a amplitude da atuação dos concorrentes no mercado e por outro superpõe-se às regras que asseguram o funcionamento dos mercados [liberdade de concorrência, liberdade de iniciativa, além de outras][2].
O impasse que aqui se coloca é solucionado pela via de uma perspectiva utilitarista. A garantia do privilégio “vantagem concorrencial” proíbe temporariamente a concorrência por imitação, consubstanciando um incentivo para os inventores assumirem riscos vinculados ao desenvolvimento de novas invenções.
A revelação da invenção e sua disponibilização à sociedade — sua entrada no “domínio público” —, disponibilização sobrestada pelo prazo de vigência da patente, é a contrapartida à garantia do privilégio. Extinto o prazo de vigência da patente prevalece sua disponibilização à sociedade.
Para além de incrementar o estado da técnica, a disponibilização da invenção à sociedade supõe liberdade de exploração econômica, viabilizando a concorrência pela via da imitação, implicando em maior variedade de produtos e serviços de melhor qualidade e a preços mais baixos, incremento do bem-estar social. A disponibilização da invenção à sociedade é essencial para que seja atingido o fim que se almeja com a garantia do privilégio.
Tem-se, por conseguinte, não ter o mero ato de inventar isoladamente considerado a virtude de gerar o efeito social almejado. Pelo contrário, o desenvolvimento econômico e tecnológico, para além de pressupor um tempo de vigência do privilégio adequado a este fim e a observância de critérios qualitativos para a concessão de patente, é consequência de um processo que pressupõe a disponibilização da invenção à sociedade. Em um contexto onde, faltando a possibilidade de livre utilização da invenção, só houvessem privilégios — privilégios qualitativamente baixos e/ou demasiadamente longos — os mercados restariam centralizados nas mãos de poucos, os inventores, e o fim constitucional comprometido.
[o caráter temporário das patentes]
07. O fator de relevância para o desenho do instituto das patentes é encontrado no balanço ideal necessário entre estímulo individual e custo social para gerar um resultado social positivo. No que respeita ao tempo de vigência das patentes, o estímulo determinado na legislação brasileira é de vinte anos a contar da data do depósito do pedido de patente (artigo 40 da LPI). A vigência de patente para além do adequado desequilibra o sistema produzindo efeitos negativos, centralizando os mercados e desestimulando a inovação.
O caráter temporário atribuído pela nossa Constituição às patentes não significa apenas que seus prazos de vigência são limitados no tempo. Esses prazos hão de ser definidos com termo certo, predeterminado, conhecido pelo mercado. Atribuir-se às patentes prazos indeterminados descaracterizaria a temporariedade do instituto, afrontaria o disposto no seu artigo 5º, XXIX cristalino ao referir “privilégio temporário” de utilização.
08. O extinto parágrafo único do artigo 40 da LPI estabelecia que “[o] prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior”.
Ao submeter a extensão da vigência das patentes ao prazo de duração do processo de exame dos pedidos — prazo indeterminado — permitia que o termo de vigência das patentes superasse os prazos estabelecidos pelo caput do preceito: “[a] patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito”.
O preceito contido no parágrafo único do artigo 40 da LPI tornava variáveis, incertos e indetermináveis os prazos de vigência das patentes. Prazos que passavam a ser distintos, caso a caso, conforme a duração do respectivo processo de exame de pedido de patente.
09. A inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI era evidente.
A norma extraída desse parágrafo transformava o privilégio temporário definido pelo caput do artigo 40 em privilégio por tempo indeterminado. Ocorre, no entanto, que privilégios consubstanciam rupturas da igualdade, vantagem em relação ao direito comum da qual alguém desfruta excepcionalmente. Excepcionava os privilégios colocando-se em oposição a ele ou situando-se à sua margem[3].
Privilégio temporário, no contexto da totalidade normativa que a Constituição do Brasil compõe, é privilégio concedido por prazo certo, predeterminado, conhecido pelo mercado. De modo distinto — mais do que distinto, adverso — privilégio por tempo indeterminado é o concedido por prazo incerto, não determinado, não conhecido pelo mercado.
O artigo 5º, XXIX da Constituição do Brasil, repita-se, concede privilégio temporário de utilização de patentes. Temporário, no contexto do preceito, é o que perdura por tempo determinado, provisoriamente, transitoriamente. O preceito constitucional, diversamente do que o parágrafo único do artigo 40, LPI, ensejava, não admite que a lei assegure aos autores de inventos industriais privilégio por tempo indeterminado.
O parágrafo único do artigo 40 da lei 9.279/96 afrontava a Constituição. Subvertia o caráter temporário do privilégio — privilégio temporário de utilização de patentes — na medida em que tornava variável, incerto e indeterminável seu prazo de vigência.
10. É evidente pois que eventual determinação casuística e individualizada de termo de patente geraria situação idêntica àquela que se colocava na vigência do agora extinto parágrafo único do artigo 40 da lei 9.279/96, violando o caráter temporário do privilégio.
[a retroatividade do direito de patente]
11. O legislador ordinário determinou o teor do privilégio temporário na LPI garantindo ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos o invento (artigo 42 da LPI) e o direito de obter compensação pela exploração econômica indevida do invento (artigo 44 da LPI).
No que concerne à vigência do privilégio, o artigo 40 da LPI determina que, em relação às patentes, seu prazo será de vinte anos contados da data de depósito, de sorte que no direito brasileiro o termo de início de vigência do privilégio não coincide com o momento de sua concessão.
A concessão do privilégio é um ato administrativo constitutivo. Será perfeito quando não for nulo. E mais, será eficaz quando apto a produzir os efeitos que lhe são inerentes.
A eficácia do ato administrativo principia quando o ato se torna perfeito. Mas sua eficácia poderá, por determinação legal, ser estabelecida em momento anterior à sua perfeição, retroativamente.
No ordenamento jurídico brasileiro a eficácia do ato de concessão do privilégio é estabelecida em um momento anterior à sua perfeição — artigo 44 da LPI —, na data de depósito do pedido, o privilégio garantido produzindo efeitos retroativos.
12. Para além da possibilidade de obter compensação pela exploração econômica indevida do invento (artigo 44 da LPI), destaca-se em situações que envolvam atrasos injustificados na condução do processo administrativo de exame e concessão de patentes, o artigo 5º, LXXVIII da Constituição brasileira garante ao lesado, no âmbito judicial e administrativo, razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Em síntese, enquanto a conjugação do artigo 42 com o artigo 44 já promove a almejada proteção patentária, o preceito constitucional fornece aos depositantes instrumentos legais que evitem a ocorrência de danos.
[os fundamentos da decisão do STF na ADI 5.529]
13. O Supremo Tribunal Federal afirmou em 12 de maio de 2021, por maioria — nove a dois —, a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da lei 9.279/1996 – Lei de Propriedade Industrial (LPI), referente à duração do prazo de vigência das patentes.
14. No que tange às patentes farmacêuticas determinou a aplicação de efeitos retroativos e imediatos (ex tunc), o que implicou na necessidade de acertar o prazo de vigência de patentes relacionadas à saúde humana, de sorte que todas elas passaram a reger-se pelo prazo regular de vinte anos a partir do depósito do pedido de patente (caput do artigo 40 da LPI).
As decisões finais do Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade, entre elas a proferida na ADI 5.529, são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante aplicável aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública, conforme determinação do artigo 102, § 2º da Constitução do Brasil.
Em parecer que emiti em 2013, juntado aos autos da ADI 5.529, assim sintetizei os desdobramentos do então vigente parágrafo único do artigo 40:
“(i) prolonga, injustificadamente, o privilégio de exploração exclusiva de produtos e processos industriais, em prejuízo de quantos possam concorrer como titulares da patente e, ainda, dos consumidores, beneficiários da livre concorrência nos mercados;
(ii) impede que virtuais concorrentes do depositante do pedido de patente tenham conhecimento da data a partir da qual poderão explorar economicamente os produtos ou processos objeto da patente, o que compromete calculabilidade e previsibilidade indispensáveis à atuação dos agentes econômicos no mercado, vale dizer, certeza e segurança jurídica; e
(iii) permite, viabiliza, incita comportamentos adversos à livre concorrência da parte de depositantes de pedidos de patente, comportamentos voltados, tanto quanto isso se torne possível, ao retardamento do processo de exame do pedido de patente conduzido pelo Poder Executivo; quanto mais lento for esse exame, mais extenso será o privilégio de utilização exclusiva dos produtos e processos patenteados”.
15. No julgamento da ADI 5.529 o relator, Ministro Dias Toffoli, afirmou que esse então vigente parágrafo único do artigo 40 era “problemático sob diversos aspectos, os quais decorrem da circunstância fundamental de que ele acaba por tornar o prazo de vigência das patentes indeterminado” (grifo no original).
Durante a vigência desse parágrafo único não era determinado o prazo final de vigência de uma patente até o momento de sua concessão. A indeterminação desse prazo, qual afirmou o Ministro Dias Toffoli,
“é circunstância que, por si só, descortina uma série de violações constitucionais que tornam inequívoca, no meu entender, a inconstitucionalidade [da] norma. [sic] O prazo indeterminado tem como consequência prática a ausência, de fato, de limitação temporal para a proteção patentária no Brasil. Isso porque o prazo das patentes sempre estará condicionado a uma variável absolutamente aleatória, consistente no tempo de tramitação do processo no INPI.” (grifos no original).
A indeterminação do prazo certo de vigência de patente fixado pelo legislador — o que consubstanciaria
“uma intrusão em competência tipicamente legislativa”, afirmou que “uma previsão normativa que, embora travestida de prazo determinado, descortina, na realidade, regra arbitrária, que torna automática a prorrogação da vigência de patentes no Brasil e possibilita a formação de monopólios por tempo indeterminado e excessivo, em franca violação da segurança jurídica, do art. 5º, inc. XXIX, da CF/88, do princípio da eficiência da administração pública (art. 37, caput), dos princípios da ordem econômica (art. 170) e do direito à saúde (art. 196)” (grifos no original).
Em síntese, a decisão de inconstitucionalidade teve por fundamento i) a indeterminação do tempo de vigência das patentes e ii) a concessão automática de patente que gerava o prolongamento injustificado do privilégio de patentes.
[as características dos sistemas internacionais de ajustamento de vigência das patentes]
16. Indaga a consulente a respeito da possibilidade de extensão casuística e individualizada do prazo de vigência de patente face à decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 5.529/DF e se a menção a mecanismos de direito estrangeiro que estabelecem a possibilidade de extensão do prazo de vigência de patentes no voto condutor autorizaria, na falta de previsão legal, a concessão dessas extensões pela via judicial.
No item 2.3 do voto condutor o relator da ADI 5.529, Ministro Dias Toffoli, tratou dos sistemas internacionais de vigência de patentes. Assim o fez referindo estudo elaborado pelo Grupo Direito e Pobreza da USP:
“O estudo concluiu que o parágrafo único não encontra paralelo em nenhuma das jurisdições estudadas. É bem verdade que algumas jurisdições no mundo contam com direitos adicionais de exclusividade, instrumentos, porém, essencialmente distintos da prorrogação automática e discricionária operada pela lei brasileira.
Esses instrumentos seguem uma lógica essencialmente diversa da adotada pela legislação brasileira, por terem aplicação reduzida, limitada a casos específicos, e por não serem direitos automáticos.
(…)
De fato, diferentemente do que muito se alegou nos autos deste processo e nas sustentações orais realizadas na sessão de julgamento, não se depreende do direito comparado previsão similar à do parágrafo único do art. 40 da LPI, ou seja, que determine extensão automática de vigência de patente (independente de pedido, motivação ou qualquer ônus) e geral (sobre todos os setores tecnológicos). Há nos autos menções a institutos semelhantes ao aqui analisado. Todavia, nenhum deles se mostra tão amplo e indiscriminado como o previsto na Lei nº 9.279/1996” (grifos no original).
17. No que respeita à fundamentação jurídica que determina o teor de decisões, as razões que conduziram à declaração da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI consubstanciam a ratio decidendi. Por outro lado tem-se como obiter dictum as razões expostas que não contribuem de forma direta, essencial à construção do teor da decisão.
Essencial à construção da decisão, a expressão ratio decidendi reporta aos seus efeitos vinculantes, ao passo que o obter dictum é caracterizado por ausência de efeitos vinculantes.
Relembre-se que a ratio decidendi da decisão de inconstitucionalidade na ADI 5.529 é encontrada i) na indeterminação do tempo de vigência das patentes e ii) na concessão automática de patente que, por sua vez, no caso gerava o prolongamento injustificado do privilégio.
Daí que, não contribuindo de forma direta ou essencial à determinação do teor da decisão, a menção no voto condutor a sistemas de ajustamento de patentes estrangeiros manifestamente ocorreu como mero obiter dictum.
A leitura atenta do trecho do voto do Ministro Dias Toffoli acima transcrito evidencia que essa menção demonstra a impraticabilidade de argumento arguido com insistência nos autos e nas sustentações orais no âmbito da ADI 5.529, argumento de que o mecanismo de compensação do inconstitucional parágrafo único do artigo 40 da LPI é análogo a mecanismo de ajuste de termo de patente, nos moldes daqueles adotado em alguns países estrangeiros.
18. Em suma, considerando-se ser comum aos diferentes sistemas internacionais de ajuste de patente a previsão por lei e a validade geral dos parâmetros adotados para o cálculo de compensação porventura devida, à hipótese aventada no terceiro quesito contido na presente consulta há de ser aplicado o disposto no artigo 37, § 6° da nossa Constituição.
Quanto à suposição de que na ausência de previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro a mera menção ao mecanismo em questão no voto condutor autorizaria a concessão de extensões de termo de patente pela via judicial, casuística e individualmente, em clara violação à ratio decidendi da decisão de inconstitucionalidade, relembro a lição de Carlos Maximiliano, que aqui cai como uma luva:
“Deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” [4].
[responsabilidade objetiva do Estado]
19. Ao Poder Executivo incumbe o exame de patente pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Qualquer dano decorrente de lentidão nesse exame há de ser suportado pelo Estado, nos termos do disposto no artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil.
Daí que um pedido de compensação pela eventual mora do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em analisar e conceder pedido de patente na forma de extensão do prazo de vigência da patente afronta o quanto dispõe esse § 6°, do artigo 37 da CB. Em lugar de responsabilizar o Estado pela sua mora – dele, Estado — o exame do pedido de patente puniria a sociedade em geral pois implicaria na ampliação da vigência das patentes, o que gera custo social.
O nexo de causalidade entre dano e sanção é rompido, responsabilizando-se a generalidade — os concorrentes dos titulares da patente e os consumidores — pela demora no desempenho, pelo Estado, de uma de suas funções, de um seu dever-poder. Relembro, bem a propósito, o velho brocardo: nemo turpitudinem suam allegare potest.
O deslocamento da responsabilização por essa extensão de prazos, exclui a responsabilidade do Estado, afirmada pelo artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil, razão pela qual o terceiro quesito proposto na consulta há de ser respondido nos seguintes termos: a extensão do prazo de vigência da patente como forma de compensação ao titular pela eventual lentidão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no procedimento de exame de pedido de patente imporia indiretamente sanções a pessoas estranhas ao causador do dano decorrente da mora em questão. Qualquer dano decorrente de lentidão no exame de pedidos de patente há de ser suportado pela União, nos termos do disposto no artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil.
[respostas aos quesitos]
20. Aos quesitos que me foram propostos na consulta dou, portanto, as seguintes respostas:
1. não, o ordenamento jurídico brasileiro não contém previsão legal referente à extensão do prazo de vigência de patentes, de forma que, não tendo o legislador previsto um mecanismo neste sentido, a eventual extensão de prazo de patente por via judicial não é possível;
2. sim, qual ocorria na vigência do agora extinto parágrafo único do artigo 40 da LPI, o pedido de extensão casuístico e individualizado do prazo de vigência de patente acarreta os mesmos problemas de insegurança jurídica apontados pelo STF na ADI n. 5.529/DF, tais como incerteza e imprevisibilidade acerca da data de expiração das patentes;
3. sim, a extensão do prazo de vigência da patente como forma de compensação ao titular pela eventual lentidão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no procedimento de exame de pedido de patente imporia indiretamente sanções a pessoas estranhas ao causador do dano decorrente da mora em questão; daí que qualquer dano decorrente de lentidão no exame de pedidos de patente há de ser suportado pela União, nos termos do disposto no artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil; essa extensão é inadequada à luz do artigo 37, § 6° da Constituição do Brasil;
4. não, a menção a mecanismos de direito estrangeiro que estabelecem a possibilidade de extensão do prazo de vigência de patentes no voto condutor da ADI n. 5.529/DF não autoriza a concessão dessas extensões pela via judicial; isso porque não há no ordenamento jurídico brasileiro previsão legal neste sentido e a concessão casuística e individualizada deste tipo de extensão violaria a ratio decidendi da decisão de inconstitucionalidade em questão; se isso já não bastasse, a menção aos mecanismos de direito estrangeiro ocorreu, obiter dictum, com o mero objetivo de demonstrar que os mecanismos de direito estrangeiro em questão divergiam daquele instituído pelo parágrafo único do artigo 40 da LPI;
5. não, no ordenamento jurídico brasileiro não há lacuna a ser suprida acerca do prazo de vigência de patentes de invenção;
6. não, a extensão de prazo de vigência de patente já expirada não é possível, dado que a legitimidade do sistema de patente repousa em uma relação comutativa; no caso em questão, extinto o prazo de vigência da patente por força da decisão vinculante do STF na ADI n. 5.529/DF, decisão que expressamente determinou a aplicação de efeitos retroativos e imediatos (ex tunc) da declaração de inconstitucionalidade para patentes farmacêuticas, prevalece sua disponibilização à sociedade;
7. no que toca a primeira parte do quesito, sim; o prazo de vinte anos de proteção a contar da data do depósito do pedido é internacionalmente reconhecido como suficiente para a consecução do fim ao qual a garantia do privilégio se propõe, o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional; quanto à segunda parte do quesito, sim; o ordenamento jurídico resguarda os interesses de titulares de patente desde a data do depósito, o que abarca a fase relativa ao período que antecede a concessão da patente, conferindo-lhes as prerrogativas previstas no artigo 42 da LPI e, com efeitos retroativos, no artigo 44 da LPI.
É o que me parece
São Paulo, 18 de janeiro de 2022
Eros Roberto Grau
[1] Reporto-me ao quanto afirmei em meus Por que tenho medo dos juízes, 10ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2021; Pourquoi j’ai peur des juges, Éditions Kimé, Paris, 2014; Das Verhältnis der Richterschaft zum Recht: Auslegung und Anwendung des Rechts und der Rechtsgrundsätze, trad. Volkhart Hanewald, Nomos, Baden-Baden, 2019 e Por Que tenho Medo dos Juízes, Edições Almedina, Coimbra, 2020, p. 80.
[2] Veja-se o artigo 170, incisos IV e V da Constituição do Brasil.
[3] Um autor anônimo do século XVII (Droit public de la province de Bretagne, avec des obfervations relatives aux circonftances actuelles, s.l., 1789, pp. 137-138, nota de rodapé) referia: “Qu’eft-ce qu’un Privilége? C’eft un avantage que le Prince accorde gratuitement ou à prix d’argent, mais toujours contre le droit commun”. O quanto afirma Francisco Suarez a respeito disso (Tratado de las leyes y de Dios legislador, versión al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll, tomo VIII, Madrid, Editorial Réus, 1919, pp. 4 a 12) é primoroso.
[4] Hermenêutica e aplicação do direito, Livraria Freitas Bastos, sexta edição, Rio de Janeiro, 1957, p. 201.
ISSN 2509-5692