Press "Enter" to skip to content

Terrorismo Industrial: Pseudas Soluções para o Backlog do INPI

Por Pedro Marcos Barbosa

Em artigo denominado “Solução ‘extraordinária’ propõe limpeza em estoque de patentes”, de autoria do jornalista Daniel Rittner, publicado no periódico Valor Econômico do dia 19.07.2017, a questão (já demodê) do acúmulo de processos administrativos junto ao INPI é, mais uma vez, ventilada.

Segundo o comunicólogo haveria uma “minuta de decreto (…) em gestação” no MDIC, através do qual se criaria uma “análise simplificada” dos processos administrativos de patentes o que, por sua vez, resultaria no “deferimento em caráter sumário dos pedidos no prazo de um ano”.

Dando os adequados “descontos” que um artigo jornalístico merece e supondo não haver profundo conhecimento dos fatos, é preciso tecer alguns comentários sobre as políticas públicas envoltas no sistema de patentes.

O político profissional é sempre coactado pelas premissas implícitas que carrega, delimitado pela arquitetura jurídica existente e demandado pelos anseios de seus eleitores; ou quando não foi eleito diretamente, ao menos deve levar em conta os destinatários de suas ações.

A chaga do acúmulo de processos administrativos não trata de um problema exclusivo da Autarquia Federal responsável pela Propriedade Industrial, mas também afeta os serviços da agência reguladora sanitária e àqueles que dependem de uma decisão do MAPA ou IBAMA, exemplificadamente. Em síntese, há muitas autarquias e órgãos públicos que não conseguem atender em tempo célere (eficiência e duração razoável dos processos – respectivamente atinentes ao art. 37, caput da CRFB e art. 5º, LXXVIII da CRFB) às demandas dos administrados; mas em poucas delas há tanto “holofote” quanto no que toca os entraves e obstáculos destinados ao INPI.

Por tal razão, não é incomum que “soluções mágicas” pululem aqui e acolá visando a sanatória imediata de um complexo problema formado ao longo das décadas, desde a criação da Autarquia Federal pertinente nos moldes atuais, de acordo com a Lei 5.648/1970.

Na reportagem do Valor Econômico o insight da proposta de fonte normativa é puramente pragmático, tal como na “pureza” ideológica da law and economics da Escola de Chicago.

As premissas são razoavelmente simples: (i) se não há controvérsia de que os prazos médios para a conclusão de exames de patentes estão muito longos; (ii) se é unânime que a duração exacerbada do processo administrativo faz mal à indústria (titular ou não-titular de pedidos de patente); e (iii) se a contratação de muitos servidores de regime permanente, a longo prazo, fará com que tais funcionários públicos, com alto escalão remuneratório, fiquem com baixa demanda de serviços – em “x” anos, com o término do backlog, haveria muito custo e pouca eficiência na medida de ingresso de milhares de novos examinadores -, a “solução” não pode ser outra do que a de deferir toda e qualquer pretensão de uma patente em um ano.

Se o leitor já não se espantou com a completa desproporção entre a moléstia (mora) e a profilaxia (concessão semi-automática de direitos de propriedade sobre bens de produção), permita-nos uma breve divagação.

O Brasil vive uma séria crise sobre seu sistema previdenciário, o que gera preocupação de dois distintos motes. De um lado, o Poder Público deve se precatar com os orçamentos e sua capacidade de manter vivo e pujante o sistema de aposentadoria e assistência social pautado na lógica solidarística (art. 6º, 100, §18, III, e 194 da CRFB). Por isso, numa política pública que fosse pautada – somente – pela “eficiência econômica”, a “utopia” consistiria em que todos os contribuintes falecessem, sem deixar herdeiros e dependentes, antes de se aposentarem. Nesta esteira, a fixação de idades mínimas em 75 ou 80 anos antes do acesso à seguridade/assistência social seria uma baliza “ótima” visando o interesse público secundário (arrecadatório).

De outro lado, o cidadão sofre com a burocracia exegética, passa uma parte considerável de sua vida lidando com descontos em seu contracheque, lidando com filas longas e fatigantes nas agências do INSS e, ainda por cima, ele é obrigado a obter documentos de difícil acesso com empregadores já falidos ou sociedades empresárias que foram incorporadas há décadas atrás. Neste quadrante – no de uma política pública apenas voltada no bem-estar imediato do beneficiário, o ideal seria que todos aqueles que requeressem a aposentadoria pudessem ter seus pedidos de “pleno direito” concedidos, quase que simultaneamente ao pleito, sem qualquer aferição do mérito envolvido.

Ambas as soluções seriam juridicamente extravagantes, geradoras de gigantesca injustiça social e promotoras da exclusão e irrealização orçamentária. Nem todo direito pode ser limitado a uma equação, nem, tampouco, a ordem política pode converter-se em uma pródiga distribuidora de benefícios sem fonte econômica que a garanta.

Em termos de antecedente histórico, contudo, é importante lembrar de que já se implementou uma “brilhante” ideia de conceder patentes expeditas, sem que seu mérito fosse analisado (apenas contemplando requisitos formais), o que resultou no sistema das patentes pipeline. Além de muito jubilo e lucro que causou aos estrangeiros beneficiados (quase 100% de tal espécie de patente excepcional foi destinada a pessoas jurídicas de direito privado de origem alienígena), o regime privilegiado ainda resultou num catatau de mais de duzentos processos judiciais e de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 4234), intentada pela Procuradoria Geral da República e que aguarda análise meritória do STF desde 2009.

Há, contudo, problemas mais graves que merecem a reflexão dos possíveis autores do “decreto em gestação”. Em primeiro lugar, o Brasil é membro da OMC, além de ser fundador do Acordo TRIPS. Neste Tratado-Contrato os requisitos (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – art. 27.1) e condições (suficiência descritiva, e best mode – art. 29.1) de patenteabilidade não aparecem como faculdades jurídicas. Ou seja, se há algum espaço para a soberania nacional tecer suas políticas públicas, desde que se respeite um embasamento mínimo do TRIPS, de outro, há regras jurídicas cogentes para os Estados.

Narra a reportagem do Valor Econômico que, ainda por cima, todas as searas tecnológicas seriam contempladas neste “decreto”, excluindo-se o conteúdo farmacêutica. Nesta possível proposta mais uma violação às regras internacionais seria perpetrada, visto que o Acordo TRIPS não tolera o tratamento discriminatório de searas tecnológicas (art. 27.1).

Neste sentido, se o Poder Público de qualquer país-membro do Acordo TRIPS (e, logo, da OMC) passar a carimbar e conceder qualquer pedido de patente sem atentar aos objetivos mandatórios do Tratado-Contrato (transferência de tecnologia, difusão em benefício recíproco de produtores e usuários – art. 7), sem analisar os requisitos e condições meritórios, poder-se-á, em verdade, interpretar tal conduta como violadora das balizas mínimas do comércio internacional. O generoso membro da OMC estaria sujeito a painéis multilateriais, pois TRIPs não é hard law apenas quando cuida de proteger, mas também quando se trata de resguardar direitos de P.I., e do que será tutelado (vide art. 70.3).

Observando tal hipótese sob uma lupa do cotidiano é preciso ventilar algumas perversões possíveis. Num exemplo concreto: se qualquer postulante pedisse uma tecnologia e o INPI a lhe outorgasse imediatamente, seria inevitável que titulares de pedidos obtivessem tutela sobre (i) bens já integrantes do domínio público (portanto indisponíveis, conforme o art. 99, I, do Código Civil); (ii) conteúdo tecnológico de titularidade de terceiros (outras patentes colidentes e vedação ao double patenting); e até (iii) de teor técnico violador da ordem pública (a exemplo de patentes sobre seres humanos, ou com reivindicações versando sobre tortura).

A inflação de títulos podres geraria, a médio prazo, um sistema caótico de exclusividades, com baixa valia e confiabilidade. Cura-se o backlog do INPI, sepulta-se o desenvolvimento dinâmico e enxerta-se uma fortuna de capital para os escritórios de advocacia que litigarão sobre toda e qualquer patente.

Por sinal, mais sensível do que a ordem internacional, também é difícil ignorar que o sistema de patentes é condicionado à cláusula finalística (desenvolvimento social, tecnológico e econômico – art. 5o, XXIX, da CRFB) fundamental, bem como à ordem econômica (livre concorrência – art. 170, IV, da CRFB) Constitucional. Nenhuma patente pode ser concedida ao vilipêndio de tais regras, princípios, valores e postulados, sob pena de formar-se um sistema antropofágico.

Mas ainda que o político profissional e a federação de empresários pudessem contornar a Constituição Formal e Material e as obrigações internacionais, é difícil crer que alguém fizesse uso de uma fonte normativa hierarquicamente menor (decreto), cuja função é meramente executória, para apartar-se do texto da Lei 9.279/96. No “Código” da Propriedade Industrial, todo o sistema concessório é sujeito às regras de direito administrativo vinculado. Noutros termos: mesmo que o administrador não queira e o examinador não goste, se os requisitos legais estão presentes o pleiteante obterá a patente. Não se cuida de regalia, de fruto do favorecimento; é direito constitucional subjetivo, trata-se do Estado de Direito.

Em sentido contrário, também não pode o político, o examinador e/ou o titular do pedido obter exclusividade sobre tecnologia que não é sujeito ao meticuloso exame pretérito de tais condições e requisitos, visto que não se sujeita a discricionariedade ou arbítrio de quem quer que seja. Por isso, nenhum Decreto poderia criar um sistema paralelo de carimbos automáticos ou exames claudicantes, tal como um candidato distribui santinhos às vésperas de um período eleitoral.

De modo a concluir este sintético ensaio sobre os problemas dogmáticos e zetéticos de um “improvável” e “exótico” “decreto-nascituro”, é preciso muita cautela com soluções imediatas e populistas. A política industrial brasileira não é tratada com seriedade há décadas, não há planos plurianuais de desenvolvimento científico e tecnológico e qualquer ideia miraculosa poderá mostrar-se mais daninha do que o “problema” que a motivou.

Enquanto projetos sérios podem melhorar a capacidade produtiva do INPI (a exemplo do excelente PLS 62/2017 que dá autonomia econômica à autarquia), aumentar o corpo de examinadores (como vem sendo implementado) e de produtividade (como também ocorrido sob a batuta do Presidente Luiz Otávio Pimentel), este tipo de anteprojeto de decreto pode reverberar a insegurança e catalisar oportunistas com pleitos tecnológicos sem mérito. É preciso cumprir estritamente os prazos do art. 32 da Lei 9.279/96 para evitar a inovação de quadros reivindicatórios a cada instante, às vezes inéditos e trazidos no bojo de uma ação judicial intentada anos depois do ato administrativo. Ainda, é necessário cessar com o paternalismo de dar inúmeras chances até que multinacionais adequem seus pedidos à legalidade constitucional.

A história brasileira demonstra que os jeitinhos e gambiarras jurídicas sempre causaram novas patologias ao já combalido sistema da propriedade industrial, não resultando no welfare social que havia motivado a “intervenção” estatal na criação de tais regras jurídicas.

Este autor não acredita que portarias, instruções normativas, ofícios ou mesmo decretos tenham o condão de alterar realidades como num passe de mágica e nem, tampouco, na capacidade de agentes políticos de subverterem todo o ordenamento jurídico para, assim, lidarem com a agrura do backlog.

Simpatias, mandingas e superstições podem ser objeto do gosto de muita gente, mas não podem servir de base para searas estratégicas do País. No mesmo sentido, não solucionaremos o deficit de celeridade com uma imprudente e inconstitucional atribuição automática ou meramente formal de direitos de propriedade sobre bens de produção.


Pedro Marcos Nunes Barbosa – Professor da Faculdade de Direito da PUC-Rio, Doutor em Direito Comercial (USP), Mestre em Direito Civil (UERJ) e Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-Rio), Sócio de Denis Borges Barbosa Barbosa Advogados. Email: pedromarcos(at)nbb.com.br


ISSN 2509-5692

Print Friendly, PDF & Email
Copyright: ip-iurisdictio (2022)