[Pedro Marcos Nunes Barbosa e Christiano Falk Fragoso]
Em comparação com a sofisticação e a profundidade dos debates havidos no ambiente administrativo e cível da propriedade intelectual, pode ser afirmado que o Brasil ainda não tem uma cultura jurisdicional de discussão de qualidade nos casos criminais que tratam de direitos intelectuais.
Não à toa, boa parte da produção das cortes criminais a respeito é limitada (a) a aferição de que se perdeu o prazo decadencial para a propositura da queixa-crime[1]; ou (b) a ausência de legitimidade ativa, quando se pretende resguardar um direito de “propriedade” que ainda não foi constituído junto ao INPI, ou mesmo foi denegado pela autarquia federal[2].
Ainda menos frequentes são os debates[3] sobre a proporcionalidade das sanções às violações à titularidade de bens intelectuais. De fato, é nítido o “carnaval” punitivo denotando a completa ausência de critério ao atribuir penas (i) de dois até quatro anos de reclusão para violações às criações autorais[4]; (ii) de um até quatro anos de reclusão se o objeto criativo for programa de computador[5] (que, por ficção legal, também é tratado como se direito autoral fosse); ou (iii) de um a três meses de detenção, ou multa, se a violação foi a bens jurídicos de propriedade industrial[6].
Se um marciano pousasse na terra e resolvesse ler o “cardápio” sancionador aos crimes praticados contra os titulares de direitos de propriedade intelectual, poderia concluir que o bem jurídico vulnerado nas violações às criações de matiz estético é bem mais relevante do que nos produtos intelectuais ornamentais, distintivos e utilitários.
Em realidade, todavia, certos grupos de pressão foram mais exitosos no convencimento do Poder legiferante para entabular a severidade dos castigos. Aliás, outra questão advinda da grande disparidade de sanções resulta que os ilícitos sejam dirimidos mediante procedimentos completamente díspares (e.g. Varas Criminais vs. Juizado Especial Criminal[7]). Para além do chamativo contraste de penas, também poderia atrair a atenção do ‘alienígena’ o fato de que a violação dos direitos do titular de um cultivar (variedade vegetal) não atrair sanção penal[8], ou o fato de que alguns ilícitos são perscrutados mediante iniciativa pública e outros tantos pela iniciativa privada – também de modo pouco coerente.
Se a parca utilização da pretensão punitiva penal no tocante à propriedade intelectual – afora o contexto do direito de autor – poderia ser associada às brandas penas de detenção ou multa, as vicissitudes culturais de organização empresarial podem indicar uma modificação de panorama.
Não é incógnito que, após grandes escândalos de corrupção, diversas sociedades empresárias adotaram modelos estatutários de severa adesão a regras de integridade (na versão anglófona, compliance). Inclusive muitos ambientes empresariais passaram a exigir que seus dirigentes profissionais não apenas sejam honestos, mas também assim o pareçam.
Logo, uma mera ação penal em trâmite pode servir como forte fator dissuasório, independentemente da formação de culpa de quem exerça atos de gestão. Exatamente por tal premissa, é necessário que o Poder Judiciário faça um controle minucioso para evitar o abuso do direito de petição na esfera do direito das liberdades.
Questão menos clara trata de quem é o sujeito ativo dos crimes de concorrência desleal, prevalecendo o entendimento[9] de que o acusado deve ser pessoa física, mesmo que o ato ilícito seja praticado em favor da pessoa jurídica que integra ou dirige[10]. Com o avanço das doutrinas que vaticinam a responsabilidade penal das sociedades empresárias (a exemplo do que ocorre no direito ambiental), não se estranhará que tal venha, paulatinamente, a mitigar a prudente leitura jurisdicional restritiva da legitimidade passiva das pessoas jurídicas nos ilícitos praticados contra titulares de bens intelectuais.
Por sinal, muitas vezes a prática do ilícito penal na seara da propriedade intelectual toma como premissa necessária uma estrutura empresarial criminosa (o que é algo mais complexo do que o mero concurso de agentes). Por tal razão, o Acordo ADPIC/TRIPs suscita um razoável tratamento diferenciado às empreitadas criminais em escala comercial[11].
Por sua vez, no tocante ao ônus probatório em ações penais desta senda, sobreleva a importância da prova pericial. Se esta, no âmbito cível, é tida como imprescindível no tocante (a) à concorrência desleal e ao conjunto-imagem (trade dress)[12]; (b) quando se está diante a suposta contrafação de titularidade sobre uma patente[13]; e (c) nos direitos de autor[14]; muitas vezes é tratada como desnecessária (d) para o contexto das marcas[15].
Já quando se imputa a contrafação criminal da titularidade de uma marca, a prova pericial será mesmo imperativa[16], sublinhando outra relevante distinção para as típicas discussões da responsabilidade civil. Isto não é gratuito, pois os paradigmas probatórios em matéria criminal devem mesmo ser mais elevados já que as restrições à liberdade humana e seu patrimônio devem observar todas as cautelas de que tratam o art. 5º, LIV, da CRFB.
A história brasileira da jurisdição criminal na seara da propriedade intelectual ainda é vista como singela em termos qualitativos, e basicamente centrada na tutela dos direitos autorais.
Todavia, a superior relevância econômica dos bens intelectuais (relativamente à propriedade sobre coisas, cuja violação é punida mais duramente), as contemporâneas políticas de conformação empresarial e uma inequívoca tendência de ampliação de emprego simbólico de poder punitivo indicam que mudanças contextuais significativas podem estar em curso.
[1] “Assim, em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígio, a ciência da autoria do fato delituoso dá ensejo ao início do prazo decadencial de 6 meses, sendo tal prazo reduzido para 30 dias se homologado laudo pericial nesse ínterim (…) Assim, o que se verifica é que a exegese defendida no recurso vulnera a própria natureza jurídica do instituto (decadência), cujo escopo é punir a inércia do querelante” STJ, 6ª Turma, Min. Sebastião Reis Júnior, REsp 1762142, J. 13.04.2021.
[2] “Ante o exposto, afasta-se a preliminar e nega-se provimento ao recurso. O recorrente, por sua vez, limitou-se a afirmar que “o simples depósito junto ao INPI é suficiente para legitimar a apelante a defender qualquer ato que possa causar lesão ao seu patrimônio imaterial” (fl. 411). Da leitura das razões recursais infere-se que o recorrente não refutou todos os fundamentos utilizados pela Corte de origem para afirmar a ilegitimidade da parte, principalmente no que se refere ao indeferimento do registro da marca no INPI” STJ, 6ª Turma, Min. Maria Thereza Assis Moura, REsp 1677846, DJ 28.05.2018.
[3] Pela profundidade do voto, vale menção ao Acórdão do TJSP, 7ª Câmara de Direito Criminal, Des. Otávio Rocha, AC 00107546820168260348, J. 14.10.2020.
[4] Código Penal: “Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: “Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”.
[5] Lei 9.609/98: “Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador: Pena – Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente: Pena – Reclusão de um a quatro anos e multa.
[6] Por exemplo: Lei 9.279/96: “Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I – reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou II – altera marca registrada de outrem já aposta em produto colocado no mercado. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa”.
[7] Lei 9.099/95: “Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.
[8] Em que pese a redação da Lei de Proteção aos Cultivares, Lei 9.456/97, nominar um hipotético crime na parte final de seu artigo 37, ele nunca foi tipificado.
[9] “Na verdade, não existe responsabilidade penal da pessoa jurídica, inobstante possa haver essa responsabilidade nas esferas civil e administrativa. A empresa não comete crimes, muito embora delitos sejam praticados em seu nome” DELMANTO, Celso, Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Bushatsky, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 254.
[10] “Os crimes de concorrência desleal pressupõem uma qualidade e concorrentes entre os sujeitos ativo e passivo, o que leva-nos a classificá-lo como crime próprio, posto que só o concorrente pode praticá-lo. Inovando, Celso Delmanto classifica este crime como bipróprio, posto que tanto autor como ofendido precisam ter a especial condição de competidores. Observamos, no entanto, que o sujeito ativo só pode ser pessoa física, pois na estrutura da legislação que estamos examinando, continua vigente o prolóquio societas delinquere non potest, respondendo pelos atos delituosos os diretores e administradores da pessoa jurídica, na forma de seus estatutos ou contratos de organização, que atuam em nome dela. Perante a Lei da Propriedade Industrial a pessoa jurídica não pode delinqüir por ser, conforme admite a grande maioria da doutrina, incapaz de conduta. Embora delito próprio, isto não impede o concurso de pessoas” PIERANGELI, José Henrique. Crimes Contra a Propriedade Industrial. Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 280.
[11] TRIPs: “ARTIGO 61 Os Membros proverão a aplicação de procedimentos penais e penalidades pelo menos nos casos de contrafação voluntária de marcas e pirataria em escala comercial. Os remédios disponíveis incluirão prisão e/ou multas monetárias suficientes para constituir um fator de dissuasão, de forma compatível com o nível de penalidades aplicadas a crimes de gravidade correspondente. Em casos apropriados, os remédios disponíveis também incluirão a apreensão, perda e destruição dos bens que violem direitos de propriedade intelectual e de quaisquer materiais e implementos cujo uso predominante tenha sido na consecução do delito. Os Membros podem prover a aplicação de procedimentos penais e penalidades em outros casos de violação de direitos de propriedade intelectual, em especial quando eles forem cometidos voluntariamente e em escala comercial”.
[12] “A fim de se concluir pela existência de concorrência desleal decorrente da utilização indevida do conjunto-imagem de produto da concorrente é necessária a produção de prova técnica (CPC/73, art. 145). O indeferimento de perícia oportunamente requerida para tal fim caracteriza cerceamento de defesa” STJ, 4ª Turma, Min. Maria Isabel Galloti, REsp 1778910, DJ 19.12.2018; e “A caracterização de concorrência desleal por confusão, apta a ensejar a proteção ao conjunto-imagem (trade dress) de bens e produtos, é questão fática a ser examinada por meio de perícia técnica” STJ, 3ª Turma, Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp 1591294, DJ 13.03.2018.
[13] “Configura-se cerceamento de defesa o indeferimento de produção de prova pericial, quando fica evidenciada a necessidade de se averiguar se as centrais telefônicas e os telefones móveis negociados pelas rés, empresas de telefonia móvel, violam (ou violaram) as reivindicações incorporadas pela patente PI 9202624-9, de titularidade da autora, haja vista que se discute nos autos a proteção de propriedade industrial de sistema de identificação de chamada em serviço de telefonia” TJDF, 4ª Turma Cível, Des. Cruz Macedo, AC 00382032820018070001, DJ 30.06.2016
[14] Para o direito penal, aliás, incide o verbete de súmula do STJ de número 574: “Para a configuração do delito de violação de direito autoral e a comprovação de sua materialidade, é suficiente a perícia realizada por amostragem do produto apreendido, nos aspectos externos do material, e é desnecessária a identificação dos titulares dos direitos autorais violados ou daqueles que os representem”.
[15] “Nas ações de invalidação de registro de marca, o indeferimento de prova pericial, por decisão devidamente fundamentada, e diante de arcabouço probatório suficiente para o deslinde da causa, não configura ato atentatório ao direito de defesa” TRF-2, 2ª Turma Especializada, Des. André Fontes, AC 20100201004742-7, DJ 06.07.2010
[16] “Os crimes praticados contra a propriedade imaterial que deixam vestígios, deve aplicar-se o art. 529 do C.PR. Penal. O prazo de caducidade para o ajuizamento da queixa é o de trinta dias, contados estes de quando o ofendido toma ciência da homologação do laudo pericial se este for indispensável à formalização daquela peça” STF, 1ª Turma, Min. Antonio Neder, RHC 54738, 19.11.1976.
Pedro Marcos Nunes Barbosa – Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados (pedromarcos@dbba.com.br). Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutor em Direito Comercial com Estágio Pós-Doutoral em Direito Civil pela USP.
Christiano Falk Fragoso – Sócio de Fragoso Advogados (christiano@fragoso.com.br). Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Penal pela UERJ.
ISSN 2509-5692