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O CADE e o exercício da Propriedade Intelectual – O caso das peças de reposição

por Karin Grau-Kuntz

O Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE) está na iminência de julgar um processo que coloca em pauta o exercício dos direitos exclusivos oriundos de registro de desenho industrial das montadoras de automóveis nos mercados secundários de peças de reposição must-match (peças de reposição visíveis).

A discussão envolvida no caso, que se arrasta já por quase dez anos, pode ser sintetizada no confronto de entendimentos diversos sobre a essência do viés patrimonial do direito de propriedade industrial. Por um lado, as montadoras de automóveis postulam sua compreensão linear e estática, enquanto os produtores independentes de peças de reposição o compreendem inserido no contexto dos mercados e, consequentemente, sob uma perspectiva dinâmica.

Sob a perspectiva linear e estática das montadoras o eixo, a razão de ser, do direito exclusivo de exploração econômica oriundo de registro de desenho industrial estaria centrado na pessoa do titular do direito. Assim compreendido é considerado destacado do contexto concorrencial onde desdobra os seus efeitos, isto é, dos mercados. Nesse sentido e de forma ilustrativa suscita a imagem de ilhas de monopólios, correspondendo ao prêmio garantido aos autores dos desenhos industriais, inseridas no oceano da liberdade de concorrência.

Aplicando a máxima de que não se pode tirar com uma mão o que a outra garantiu, as montadoras defendem a prevalência incondicional do direito exclusivo de exploração econômica em relação ao primado de liberdade de concorrência, de forma que na cartografia ilustrativa oferecida as ilhas de monopólio gozariam de imunidade antitruste. Nessa linha a regulação do exercício do direito exclusivo limitada aos mercados secundários — o objeto do pedido das produtoras independentes de peças de reposição na representação oferecida ao CADE — implicaria, necessária e automaticamente, em ataque, afronta à essência do direito exclusivo. Sob a ótica das montadoras, entendendo por regular o exercício no mercado secundário do direito exclusivo de exploração econômica oriundo de registro de peças visíveis de reposição, o CADE estaria fazendo vezes de legislador.

Não cabe na ocasião presente proceder a uma análise das imperfeições da perspectiva de compreensão linear e estática do direito de propriedade industrial. Dois aspectos, porque fundamentais, merecem, porém, breve menção.

Primeiramente, da mesma forma como a garantia de exclusividade de exploração econômica (o prêmio garantido ao autor do desenho industrial) tem o condão de fomentar o bem-estar social, também a garantia de liberdade de concorrência promove, na mesma medida, um fim idêntico. Na perspectiva de compreensão da propriedade industrial adotada pelas montadoras não é possível determinar nenhuma razão jurídica capaz de justificar a prevalência do bem-estar gerado pela garantia da propriedade industrial em detrimento daquele gerado pela garantia de livre concorrência. Efetivamente, os argumentos lançados para este fim são mesclados de coloração individual, isto é, calcados na genialidade criativa do autor do desenho, o que justificaria um tratamento especial em relação aos outros agentes econômicos, e/ou invocam uma pretensa proteção de investimento que reprime uma noção básica do sistema capitalista, que vincula o investimento ao risco. Adotando um discurso apocalíptico defende-se, ainda, que sem o reconhecimento de imunidade de controle pela autoridade antitruste não haveria inovação, desconsiderando, neste passo, que a contrapartida da ausência de controle concorrencial implica, em situações específicas como a dos mercados secundários, no indesejado poder de mercado.

O segundo aspecto tem em foco específico a possibilidade de controle — ou na perspectiva em crítica a impossibilidade de controle — do exercício da garantia de exclusividade de exploração econômica pela autoridade antitruste. A fim de tecer a crítica que a suposição suscita, considerar-se-á, a seguir, assimilada a informação de que o controle de condutas dos agentes econômicos consiste em uma das competências da autoridade antitruste brasileira.

O controle de condutas consiste, em atenção à máxima de preservação dos mercados, na regulação do exercício de direitos e garantias individuais em situações econômicas. Assim, por exemplo, quando a autoridade antitruste, tendo em conta a possibilidade de formação de agentes econômicos com poder de mercado, proíbe associações, ela não está, evidentemente, interferindo na liberdade individual de associação dos agentes econômicos, mas antes e sob a perspectiva de preservação dos mercados, apenas regulando o seu exercício. O mérito do exemplo para a crítica da posição defendida pelas montadoras está em evidenciar a distinção entre garantia de direito e adequação jurídico-social de seu exercício, que é apurada em sua contraposição aos interesses também protegidos por outras garantias de liberdade.

Na mesma medida, o controle pela autoridade antitruste do exercício do direito oriundo do registro de desenho industrial no mercado secundário não toca a essência do direito de propriedade industrial, mas apenas regula seu exercício em consideração à máxima de preservação dos mercados. Na contramão, o preço que se pagaria pela isenção de controle de adequação concorrencial do exercício do direito de propriedade industrial sobre os desenhos industriais seria, por uma e em consideração ao mercado relevante, sua elevação a um direito econômico absoluto.

Sem pretender desmerecer a importância econômica da propriedade industrial na economia moderna, não há como concordar com a perspectiva de compreensão do instituto jurídico proposta pelas montadoras: a exclusividade de exploração econômica garantida ao inovador não ocupa, no ordenamento jurídico brasileiro, a posição de um Santo Graal, de intocável.

De forma antagônica à perspectiva linear e estática das montadoras os produtores independentes de peças de reposição consideram e explicam o direito exclusivo de exploração econômica em questão inserido no contexto onde desdobra seus efeitos, isto é, nos mercados. Sob esta ótica a propriedade industrial desponta como um direito cuja finalidade funcional precípua é de fomentar o bem-estar social pelo incentivo da qualidade das relações de concorrência ao invés, como prega a visão estática, de fomentar os mesmos fins pela supressão da concorrência.

Em miúdos, o legislador garante ao autor do desenho industrial um direito exclusivo de exploração econômica que, na dinâmica do mercado onde é exercido, toma forma de vantagem concorrencial. Essa vantagem se expressa na vedação da concorrência de imitação. A seu turno, o que se almeja com a vedação de imitação não se esgota na mera premiação do inovador, mas ganha, ainda, expressão na forma de incentivo ao concorrente para que, na luta pela preferência do consumidor, também inove, tornando obsoleta a contribuição protegida de seu concorrente e dando ensejo a que, igualmente, venha a ser titular de direitos exclusivos de exploração econômica. Esse processo de incentivo dos concorrentes a concorrerem com os titulares de direitos de propriedade intelectual superando-os com suas próprias inovações, aqui denominado de concorrência de superação inovadora, implica, por fim, no incremento da qualidade das relações de concorrência.

No que toca o controle antitruste do exercício do direito de propriedade industrial uma intervenção será justificada sempre quando o concorrente, no mercado relevante, esteja impossibilitado de concorrer com o titular do direito de propriedade industrial superando-o com a disponibilização de uma inovação melhor, mais avançada. Havendo essa possibilidade evidentemente não caberá interferência no exercício do direito por parte da autoridade, pois que a propriedade industrial estará cumprindo com seu papel de incrementador da qualidade das relações de concorrência. Não havendo, porém, caberá à autoridade antitruste controlar o exercício do direito.

Na representação que deu origem ao processo que será brevemente julgado pelo CADE os produtores independentes de peças visíveis de reposição reclamam que as montadoras, ao exercerem no mercado secundário o direito exclusivo de exploração econômica garantido pelo registro de desenho industrial bloqueiam, efetivamente, todas as possibilidades de concorrência por superação inovadora. O prêmio garantido não cumpre, nessas circunstâncias, com seu fim, qual seja o de incrementar pela via da superação inovadora a qualidade das relações de concorrência o que, a seu turno, dá ensejo ao controle de seu exercício pela autoridade antitruste.

Tendo em conta o exposto é compreensível a expectativa com a qual se aguarda o julgamento do “caso das peças de reposição” pelo Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE). À parte a relevância econômica da questão, que vem, por exemplo, marcada pelos altos preços  praticados pelas montadoras, a esperada manifestação da autoridade concorrencial incorporando a perspectiva dinâmica de compreensão da propriedade industrial em detrimento à linear e estática representará um avanço importantíssimo frente aos novos desafios que a economia moderna, em parte estruturada e organizada em torno do conhecimento, vem apresentado.



Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Munique, Alemanha.


Foto: Karin Grau-Kuntz


ISSN 2509-5692

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