por Karin Grau-Kuntz
O direito de propriedade intelectual é um fenômeno jurídico moderno, fruto do antropocentrismo e do liberalismo econômico.
Para bem compreendermos o que vem a ser é necessário, de plano, esclarecer as diferenças entre o direito de propriedade sobre as coisas e o direito de propriedade intelectual. Nessa linha é importante frisar, desde já, que o emprego do termo propriedade intelectual confunde e dificulta a compreensão do instituto jurídico.
A escolha do termo propriedade para designar o direito exclusivo que recai sobre bens intelectuais reporta a razões de cunho ideológico. A passagem da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada especialmente por uma mudança no eixo do pensamento filosófico; a sociedade se libertou da religião e o homem passou a ser considerado em sua individualidade. O conceito de propriedade exerceu, naquele momento histórico de grandes transformações sociais, um papel importantíssimo, até mesmo revolucionário. O reconhecimento estatal da propriedade privada como direito político viabilizaria o desaparecimento das corporações de ofício e dos odiados privilégios ou, em outras palavras, dos meios de controle do Estado mercantilista. A essência desse pensamento vem bem expressa no famoso grito de batalha de Gournay: “Laissez-faire”.
Um exemplo belíssimo da instrumentalização ideológica da propriedade no que toca bens intelectuais é fornecido na argumentação adotada por Denis DIDEROT em um memorial escrito no ano de 1736, chamado de “Carta sobre o Comércio do Livro” (Editora Casa da Palavra, 2002). O enciclopedista, defendendo a sanção estatal do contrato privado pelo Estado, procurava alcançar que este fosse respeitado erga omnes e, assim, impedir que fosse concedido a terceiros e à revelia do autor o direito de exploração de sua obra intelectual. A leitura do memorial é recomendável.
O mercantilismo cedeu ao liberalismo, o direito de propriedade privada é hoje uma das bases da ordem econômica e seu papel social não é mais revolucionário, mas antes estabilizador da estrutura econômica moderna.
Estudando o desenvolvimento do direito de propriedade sobre bens intelectuais notamos que a ideia de propriedade em relação a estes bens intangíveis foi necessária como argumento transformador e, como é característico em todo processo revolucionário, as imperfeições do argumento persistiram imperceptíveis pela emoção da batalha por mudanças sociais. Superado o momento revolucionário, adotada a nova estrutura social, abrandado o fogo da emoção revolucionária, é então possível proceder com a análise do argumento de forma objetiva e as imperfeições despontam, então, evidentes.
No que tange o direito de propriedade privada sobre coisas é ele constituido juridicamente com a finalidade de tornar possível a autodeterminação patrimonial dos indivíduos. A finalidade de autodeterminação patrimonial perseguida pelo direito de propriedade privada sobre coisas admite classificá-lo como um direito individual, sem que, com isso, deixe de estar condicionado pelo todo social (naquela conhecida expressão do direito alemão: a propriedade obriga). Nesses termos é possível determinar uma relação direta entre o objeto do direito da propriedade privada sobre coisas e o sujeito do direito. Assim, por exemplo, o proprietário de um lápis irá tomá-lo com a sua mão para, por meio dele, fazer anotações ou escrever uma carta. A relação entre o proprietário e lápis, o objeto da relação de propriedade, se esgota em si mesma e é possível independentemente da existência de fatores externos.
Ocorre, porém, no que toca à propriedade intelectual, que, apesar de nos referirmos a um direito de propriedade, a relação direta entre proprietário e coisa, a exemplo daquela acima exposta, não se deixa transpor aos bens intelectuais. A impossibilidade aqui não é apenas ideológica, mas também real.
Nesse sentido, despeito de só ser reconhecido um direito de patente às invenções que preencham o requisito da novidade, atividade inventiva e utilidade industrial e do direito de marca só ser garantido nos limites da atividade comercial, um texto legal que determinasse a exclusividade de um bem intelectual no que diz respeito ao seu aproveitamento privado seria, por razões fáticas, desprovido de qualquer eficácia social. Como, por exemplo, impedir alguém de cantar debaixo do chuveiro uma canção protegida por direito de autor ? (Para bem compreender o afirmado é importante conhecer as diferenças entre texto legal e norma).
A finalidade imediata do direito da propriedade intelectual não é viabilizar (imediatamente) a autodeterminação patrimonial de seu titular mas, sob uma perspectiva econômica e conforme explicarei a seguir, fomentar a concorrência. A autodeterminação patrimonial dos sujeitos do direito de propriedade intelectual desponta aqui, ao contrário, como um efeito mediato da garantia da proteção.
A afirmação pode parecer curiosa, mas ela nada mais é do que uma consequência natural do fato da propriedade intelectual ter por objeto bens intelectuais, i.e. bens ubíquos.
A menor unidade da propriedade intelectual é a informação. Informação, por sua vez, será caracterizada para os fins desse artigo como um conjunto organizado de símbolos inteligíveis a um determinado receptor, capaz de aderir ao patrimônio intelectual daquele. Quando a informação é internalizada pelo receptor, dizemos que ela se transformou em conhecimento.
Característica da informação é sua ubiquidade. Ou seja, a menos que ela seja mantida em segredo total, o que é muito difícil de levar a cabo, se não até mesmo impossível, um sujeito não poderá submetê-la ao seu domínio exclusivo.
Uma vez colocada no mundo, a informação é propagada como que levada pelos ventos. Ela é livre e não precisa de impulso externo para ganhar espaços. Desta forma nos referimos às informações dizendo que elas são divulgadas, ao passo que os bens materiais são distribuídos.
Outra diferença da informação em relação a bens materiais é que ela não perece, quando muito ficando apenas desatualizada (o que não implica que deixe de existir). Por fim, sua utilização por uma pessoa não implica na perda de suas qualidades ou de sua substância, i.e., a informação não se desgasta pelo uso.
Tendo em vista suas características é evidente que também do ponto de vista econômico as informações apresentem diferenças em relação aos bens materiais. Essas diferenças são ressaltadas quando afirmamos que a informação é um bem caracterizado pela ausência de rivalidade de consumo, o que equivale a dizer que a informação atinge várias pessoas ao mesmo tempo e que essas pessoas podem valer-se dela de forma concomitante. O mesmo não se pode afirmar, por exemplo, em relação a um carro. Em outras palavras, as informações não estão sujeitas à lei da escassez e, consequentemente, elas não têm em seu estado natural um preço, ou seja, um valor econômico.
Uma vez que em razão da ubiquidade é impossível a apropriação da informação nos moldes da apropriação de, por exemplo, um lápis, o legislador interfere juridicamente (i.e. artificialmente) na natureza das informações criando um direito de propriedade em relação a elas, quando expressadas de formas determinadas (na forma de uma obra intelectual, de uma invenção etc.) para que, assim, a elas seja incorporado um valor econômico. Em outras palavras, o que o legislador faz ao criar um direito patrimonial exclusivo sobre as informações é transformar aquilo que circulava livremente e, portanto, aquilo que não tinha valor econômico algum, em mercadoria.
É muito importante compreender que, ao contrário do que ocorre com o direito de propriedade sobre coisas, a única exclusividade possível no que toca as informações é aquela de natureza econômica, quer dizer, a exclusividade relativa ao aproveitamento econômico da informação. É que, como já disse acima, o exercício de uma exclusividade sobre uma coisa admite uma relação de aproveitamento direta entre a coisa e o indivíduo e, por essa razão, podemos dizer que tal relação se esgota em si mesma. Ao contrário, a relação patrimonial (destaco aqui o qualitativo patrimonial) entre o titular de um direito de autor com sua obra, por exemplo, estará necessariamente vinculada ao aproveitamento econômico daquela e, assim, à existência de um mercado, um elemento exterior ao vínculo entre autor e obra.
Ilustrando o afirmado, enquanto o proprietário de uma casa não dependerá da existência de qualquer elemento exterior para usar o imóvel para se abrigar de uma chuva forte, ou seja, para usufruir diretamente da coisa apropriada, nos limites do direito de propriedade intelectual o proprietário-autor terá de atuar no mercado para poder tirar proveito de sua obra.
Insistindo, nos limites de um direito de propriedade intelectual as vantagens da garantia do exclusivo pelo legislador estarão sempre e necessariamente vinculadas à possibilidade de obtenção de alguma vantagem de natureza econômica. Isso fica claro quando imaginamos que o proprietário de uma casa poderá correr para dentro dela quando cair chuva e, fechando a porta atrás de si, excluir do abrigo todos os outros indivíduos que se encontrem na calçada à frente da casa. Ao contrário, o autor de uma canção não poderá impedir um passante de cantarolar sua composição; o inventor não poderá impedir que sua invenção seja reproduzida no quintal do químico amador; o titular da marca não poderá impedir que a adolescente cole o caderno de escola com figuras recortadas de reproduções de sua marca. Esse tipo de controle pressuporia um controle estatal absoluto sobre atividades privadas, o que não só é impossível faticamente, mas o que ainda trataria de arruinar com o argumento de legitimação da propriedade privada, qual seja o de garantia da liberdade individual manifestada na autodeterminação patrimonial.
Não é necessário muito esforço para percebermos que com a intervenção na natureza da informação o legislador cria uma situação cujo custo social é significativo, já que faz exclusivo algo que naturalmente é livre e não passível de apropriação. O arcabouço teórico que procura legitimar essa intervenção e justificar esse custo social baseia-se no princípio de que o custo gerado pela intervenção jurídica na natureza livre da informação seria compensado em um momento posterior.
Explicando o afirmado e lembrando que ao criar a situação de exclusividade o legislador transforma a informação em um bem econômico (se exclusiva é possível agregar a ela um valor econômico), presume-se que uma vez transformada em bem econômico a informação poderá ser alocada no mercado de forma a gerar eficiência econômica. Ao satisfazer os interesses do homo eoconomicus o direito exclusivo incentivaria a produção de bens imateriais, um processo que, por sua vez, culminaria no fomento de bem-estar social, expressão que aqui emprego no sentido de aumento de riqueza material.
Em síntese, o raciocínio que aqui denomino de equação de legitimação do direito de propriedade intelectual parte do entendimento de que aqueles que despontam como perdedores no momento da garantia do direito exclusivo sobre a informação despontariam, posteriormente, frente ao processo de aumento de bem-estar geral, como ganhadores.
Podemos então afirmar que,
a) uma vez que o bem intelectual não é passível de apropriação em seu estado natural;
b) uma vez que o ato de agregação de um valor econômico a ele está vinculado a uma intervenção do legislador na natureza livre da informação;
c) uma vez que esse tipo de intervenção gera em um primeiro momento um custo social significativo, já que faz exclusivo o que era público;
d) uma vez que a justificativa do encargo do custo social encontra-se calcada em uma lógica econômica que culmina com o incentivo concorrencial como meio de aumentar o bem-estar social (portanto compensação a posteriori do custo social gerado no momento da criação do exclusivo);
ao contrário do que acontece com o direito de propriedade sobre bens materiais a autodeterminação patrimonial do titular do direito de propriedade sobre bens intelectuais não traduz a finalidade imediata do reconhecimento do direito de propriedade sobre bens intelectuais, mas antes coloca-se como um meio voltado à consecução de um fim maior, qual seja o fomento das relações concorrenciais.
Insistindo nesse ponto, a vinculação do direito de propriedade intelectual a uma determinada pessoa não expressa a finalidade da proteção, mas antes caracteriza uma instrumentalidade, ou seja, um recurso empregado para alcançar um objetivo exterior à proteção. Por essa razão afirma-se que o direito sobre bens intelectuais, ao contrário do que ocorre com o direito de propriedade sobre as coisas, não admite ser classificado como direito individual, mas antes o deve ser como direito concorrencial.
Quando se diz que o direito de patentes, por exemplo, é essencial para o progresso econômico e tecnológico, posto ser ele um instrumento essencial para o fomento da concorrência de inovação tecnológica, está-se argumentando com base no raciocínio acima descrito; está-se reconhecendo que a tônica do direito de propriedade intelectual está centrada em um objetivo exterior à relação entre direito e seu titular.
Entendida a natureza concorrencial do direito de propriedade sobre bens intelectuais, cabe ainda dedicar atenção à forma de concretização jurídica da proteção.
O legislador, ao transformar informações em bens dotados de valor econômico, garante ao titular do direito de propriedade sobre bens intelectuais uma vantagem concorrencial. Essa vantagem concorrencial que, como bem expressa o termo “concorrencial” é vantagem destinada exclusivamente a ser aplicada no mercado (e daí, mais uma vez, evidencia-se uma diferença entre as naturezas da propriedade imaterial e do direito de propriedade sobre as coisas), apela (e aqui, no verbo “apelar”, vem ressaltado um caráter instrumental) aos interesses dos outros agentes econômicos que também aspiram alcançar uma vantagem concorrencial semelhante. Em outras palavras, a vantagem concorrencial de um significa um meio (portanto, instrumento) de estímulo para que outros se esforcem em superar aquele agente agraciado. Esse processo, por sua vez, gera aquilo que denomino de concorrência de superação.
A vantagem concorrencial, por sua vez, pode ser comparada a um “escudo” de duração limitada a ser empregado contra a concorrência de imitação. Mas o emprego dessa vantagem concorrencial em forma de um “escudo” não poderá ocorrer de modo a impedir aquilo que foi aqui denominado como concorrência de superação. A vantagem concorrencial está expressa no “escudo” que impede, durante um determinado período de tempo, a concorrência de imitação; os limites do emprego do escudo, por sua vez, são traçados em consideração à proibição de fazer valer essa vantagem de forma a impedir a concorrência de superação.
Nesse ponto da exposição já é possível responder à questão proposta no título desse artigo: O que é direito de propriedade intelectual? Sob uma perspectiva patrimonial o direito de propriedade intelectual expressa uma garantia jurídica de uma vantagem concorrencial (uma exclusividade). Sua natureza é, assim, concorrencial.
Como um instrumento concorrencial a propriedade intelectual é neutra. Isso quer dizer que em si considerada ela não poderá ser valorada em nenhum ponto de uma escala constituída pelos extremos da benção econômica e da caixa de Pandora. O segredo do sucesso ou do fracasso do sistema de propriedade intelectual só poderá ser encontrado na estrutura de organização das sociedades onde ele é aplicado e na medida e adequação de sua aplicação.
Hodiernamente, em pleno desenrolar da “revolução tecnológica”, o capitalista não é mais necessariamente o dono da fábrica, das máquinas e da matéria-prima necessária para a produção de uma mercadoria, mas também e cada vez mais o titular do direito de exclusividades sobre a informação. Um exemplo dessa transformação é o modelo de negócio chamado de franchising, onde o capitalista é, em primeira linha, o “dono” de uma ideia de negócio e não necessariamente o “dono” de bens materiais. Nessas circunstâncias o direito de propriedade intelectual exerce um papel de organizador das relações econômicas que envolvem bens intelectuais. Some-se a isso a globalização dos mercados e a tendência de internacionalização das regras comerciais, e a importância do estudo do direito da propriedade intelectual resta evidente.
Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Würtenberger RA, Munique, Alemanha.
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ISSN 2509-5692