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Sobre o valor econômico dos pedidos de patente

por Karin Grau-Kuntz

Na ocasião da apresentação de proposta de norma que viabiliza a possibilidade de concessão de patentes sem exame de mérito, a Procuradoria Especializada junto ao INPI ofereceu Parecer pela sua conformidade com o sistema de patente brasileiro. [efn_note] Parecer nº 0032-2017-AGU/PGF/PFE/INPI/COOPI-LBC-1.0.[/efn_note] Entre outros argumentos, a posição favorável à proposta de norma foi justificada da seguinte maneira:

5. A medida é voltada particularmente para os pedidos que não geram produtos ou processos comercializáveis, isto é, que não afetam o ambiente concorrencial. Atribui-se aos usuários do sistema de propriedade industrial indicar os pedidos de patente que interessam ao mercado. Os pedidos assim indicados serão excluídos do procedimentos simplificado.

6. Os pedidos com baixo ou zero valor econômico são os destinatários da norma proposta.

[…]

21 […] a justificativa desse mecanismo reside na seguinte presunção: aquele que tem interesse econômico em um pedido de patente apresenta subsídio para impugnar seu concorrente.

22. O art. 4º da proposição normativa é o mecanismo para a sociedade distinguir os pedidos que possuem (ou não) impacto no ambiente concorrencial. O depositante que visualiza o seu pedido de patente como apto a gerar um direito de valor pecuniário tenderá excluí-lo do procedimento simplificado. O interessado que se sentir potencialmente prejudicado com a concessão do pedido de seu concorrente, desprovido de exame técnico, também poderá excluí-lo do procedimento.

23. Vê-se aqui uma segunda característica da proposição. Ela visa atingir pedidos que não possuem valor econômico. A maior parte dos pedidos de patente não geram produto ou processo. Reconhece-se que uma patente pode possuir valor econômico, ainda que não gere produto ou processo. De todo modo, é inegável que um número substancial de patentes concedidas não possui valor econômico. Quem fará a seleção do que tem valor econômico (ou não) é a sociedade, e não o Estado.

24. Eventual entrada em vigor da fonte normativa, supostamente, promoverá o deferimento de patentes de ‘baixa qualidade’ meritória. Como essas patentes não terão valor econômico, não se visualiza um dano ao ambiente concorrencial. O fato é que nem todas as patentes serão de baixa qualidade, mas somente aquelas inseridas no procedimento simplificado, isto é, as que não interessam ao mercado e à sociedade. As patentes que afetam o ambiente concorrencial serão excluídas do procedimento simplificado e examinadas tecnicamente.

25. De fato, haverá um determinado número de patentes cujo valor econômico somente será percebido após o seu deferimento. Para isso, a lei dispõe do processo administrativo de nulidade e da ação judicial de nulidade do ato administrativo.

Em síntese, considerando que a maior parte dos pedidos de patente depositados junto ao INPI não geram produtos ou processos comercializáveis, a maior parte dos pedidos de patente não seria, em regra, dotada de valor econômico e, por consequência, inócua do ponto de vista concorrencial. Nesse contexto e tendo em conta que a proposta de enunciado normativo teria como destinatário estes pedidos de patente sem relevância concorrencial, o exame simplificado seria o remédio ideal no combate ao backlog, pois que as exclusividades concedidas pela via do exame simplificado seriam, via de regra, patentes sem relevância econômica.

Contudo, insta recordar ao leitor, a ordem jurídica brasileira proíbe as formas de atuação que impliquem eliminação de concorrência. Em outros termos, as liberdades de comércio e indústria não podem ser exercidas de forma a comprometer o regular funcionamento dos mercados, isto é, das instituições de coordenação das decisões econômicas adequadas ao modo de produção capitalista. Isto em conta, restam evidentes as razões por trás da preocupação expressa nos trechos citados do Parecer: se a proposta de norma não causa danos concorrências, então resta afastada a possibilidade de ferir a ordem jurídica brasileira neste aspecto. Sob a perspectiva jurídico-concorrencial o exame simplificado seria remédio sem efeitos colaterais.

Ocorre, porém, estar o raciocínio desenvolvido no Parecer viciado, pois que calcado em premissas falsas.

Em miúdos, as bases da posição defendida no documento em análise são:

i) a maior parte dos pedidos de patente depositados junto ao INPI não gera produtos ou processos comercializáveis (Nr. 23);

ii) a existência de um número substancial de pedidos de patentes sem valor econômico ou com valor econômico muito baixo (Nr. 6, 23);

iii) a apuração do valor econômico dos pedidos está vinculada, via de regra, ao fato das patentes gerarem ou não gerarem produto ou processo comercializáveis (Nr. 5, 23).

Supondo que a maior parte dos pedidos de patente depositados não venha, de fato, a gerar produtos ou processos comercializáveis, cabe considerar com cuidado as duas premissas restantes.

O direito de patente é caracterizado pela garantia ao inventor/titular — o sujeito do direito — de um privilégio exclusivo temporário (vide Art. 5, XXIX, Constituição do Brasil), consistindo em direitos garantidos por um lapso de tempo determinado (artigo 40 da LPI)  de vedação a terceiros quanto à exploração econômica exclusiva do invento (art. 42 da LPI) e de obter  de obter indenização pela sua exploração indevida.

Os direitos garantidos são exercidos nos mercados. A noção de mercado, a seu turno, envolve atividade – operações econômicas – realizada nos mercados, o que supõe livre competição.

Os agentes econômicos que desenvolvem suas atividades nos mercados não cuidam, assim, somente de si, mas antes levam em conta, ao tomarem decisões econômicas, a atuação e a posição de seus concorrentes, despontando, aqui, uma das facetas do conceito de risco.

Se é verdade que só haverá direito depois de concedida a patente, isto não permite concluir que a fase entre o  pedido e a concessão da patente seja desprovida de efeitos econômicos: a probabilidade do pedido de patente vir a gerar um direito exclusivo futuro, i.e. independentemente do fato de vir a gerar futuramente um produto ou processo comercializável, traduz um fator relevante (um risco), que afeta as decisões econômicas dos agentes concorrentes do depositante. Ou seja, a patente poderá representar uma interdição (omissão) mercantil (patentes defensivas), ainda que nenhum elemento comissivo seja exercido. A contraposição ao fator risco, que afeta as decisões econômicas dos agentes concorrentes do depositante, é chamada, na perspectiva do depositante, de valor estratégico. Assim considerados todos os pedidos de patente são dotados de um valor econômico potencial, de modo que não se há de falar em pedidos de patente com zero valor econômico.

No que tangem os pedidos de patente com valor econômico muito baixo, se por um lado é válido supor que de fato existam, por outro não será possível determiná-los, pois que para tanto seria necessário apurar até que ponto a possibilidade de um pedido de patente vir se tornar patente teria afetado a decisão de agentes econômicos de não concorrerem com o depositante.

Isto posto é simples compreender o equívoco na afirmação de que a apuração do valor econômico dos pedidos está vinculada, via de regra, ao fato das patentes gerarem ou não gerarem produto ou processo comercializáveis ou, em outras palavras, ao fato do depositante vir ou não vir a explorar o invento no mercado. Na afirmação resta desconsiderado o valor estratégico dos pedidos de patentes.

Na prática o valor estratégico real de pedidos de patente ganha, por exemplo, expressão no aumento mundial de depósito de pedidos de baixa qualidade. Exatamente porque de baixa qualidade geralmente não culminam na exploração do invento no mercado, mas nem por isso deixam de ser depositados e apontados como fator negativo a concorrência e ao desenvolvimento tecnológico.

Artigos publicados neste periódico (veja aqui e aqui) já trataram com mais cuidado dos problemas jurídicos envolvidos na proposta de norma em questão. O fim do presente artigo não é, assim, “requentar” o tópico. Pelo contrário, os trechos citados do Parecer do INPI apenas calharam servir ao objetivo de abordar uma forma da compreensão estreita do sistema de patente, que não faz jus ao papel do instituto na econômica moderna.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Munique, Alemanha.


Foto: Roberto Grau Kuntz – Direitos reservados


ISSN 2509-5692

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