[Pedro Marcos Nunes Barbosa e Roberta Mauro Medina Maia]
O exercício da atividade empresarial da hotelaria é mesmo munida de uma série de desafios. Sob o pálio do direito tributário, por exemplo, uma parte considerável de seus custos fixos é vinculado ao IPTU e ao ISS (ao que os Municípios agradecem), e outras tantas à oneração dos produtos ofertados aos seus hospedes com o ICMS e o IPI (o restante das espécies de entes federativos comemoram). Somando tais custos com a multiplicidade regulatória das condições de segurança, prevenção à incêndios, regras trabalhistas com toda a variedade de detalhes pelos tipos diversos de serviços ofertados (profissionais da cozinha, equipe de arrumação e limpeza, manobristas etc.), é fácil concluir que a atividade hoteleira é bastante complexa.
Além disso, é sabido que as tecnologias “em rede” tornaram o ambiente já competitivo das hospedarias ainda mais acirrado, seja pela escassez de clientela com a minoração de viagens durante a pandemia, pelas novas exigências destinadas à contenção da crise sanitária, ou, ainda, pela popularização de serviços de hospedagem-caseira capitaneados por aplicativos como o Airbnb[1]. Aliás, quanto ao último, é notável a possibilidade da oferta de preços mais acessíveis ao público, mesmo em endereços lindeiros ao de uma sofisticada rede hoteleira situada em ponto “nobre” de um município, pela frontal diferenciação regulatória. Ou seja, quem disponibiliza ao público sua unidade imobiliária por meio dos serviços do aplicativo não precisa arcar com os significativos custos regulatórios da rede de hotelaria, o que resulta na competição desnivelada entre pousada/hotel/hostel/motel/pensão para com os locadores de imóveis para mesma função.
Recentemente, por sinal, o STJ pacificou uma velha disputa sobre a natureza jurídica dos quartos da rede de hotelaria cujo resultado agrava o quadro narrado acima. Em síntese, o Recurso Repetitivo[2] fixou a seguinte diretriz: “A disponibilização de equipamentos em quarto de hotel, motel ou afins para a transmissão de obras musicais, literomusicais e audiovisuais permite a cobrança de direitos autorais pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD”. Em outras palavras, o Tribunal da Cidadania compreendeu ser legítimo que a associação ECAD seja autorizada a cobrar pela execução de obras musicais no interior dos quartos dos empreendimentos hoteleiros, pois o habitat de um quarto fechado com hospedes dentro seria um local de “frequência coletiva”. Apenas por tal circunstância o ECAD seria legitimado a cobrar a rede hoteleira, o que não ocorreria diante de uma hipótese de simples distribuição (como a contratação direta a um fornecedor de canais de televisão à cabo para um residente).
Este é o momento do texto em que o leitor deveria sentir algum desconforto. Por qual razão um quarto destinado a hóspedes, no exercício de seu direito à privacidade (art. 1º, III, 5º, X, da CRFB e art. 11 e 12 do CC/2002), poderia, na circunstância de sua utência, ser tratado como área de “frequência coletiva”? A premissa fática maior poderia ser a de que rotineiramente os sujeitos que contratam o “pernoite” o façam por motivo de festa, reuniões amplas, ou cerimônias em um quarto cerrado?
De fato, a Lei de Direitos Autorais (9.610/98, art. 68, parágrafo 3º[3]) cria um paradigma artificial[4], cuja natureza é a de ficção jurídica. No caso, a ficção consiste em tratar como locus contextual de “execuções públicas” musicais/audiovisuais um recinto eminentemente privado e de empenho individual ou familiar. Por um lado, ficções são instrumentos legais para a imposição de políticas públicas das mais diversas[5], algumas bastante legítimas. De outra monta, a academia[6] é bastante cautelosa na legitimação de tal ferramenta, pois ela pode ser imbuída do produto de um lobby corporativo eficiente ou mesmo projetar profundas injustiças.
Porém, além do tratamento ficcional, há um outro detalhe importante: somada à premissa de que quartos de hotéis sejam locais de frequência coletiva, mesmo que o utente não goze da sonoridade musical, a simples existência (disponibilização) de aparelhos hábeis ao acesso às obras estéticas permitem ao ECAD a arrecadação de valores. Com isso, na prática, o ECAD goza das mesmas vantagens da fazenda pública quando tributa por taxas[7], porém sem a legitimidade democrática ou republicana para tanto. Portanto, além da criticável ficção, soma-se uma presunção de gozo musical.
Isso porque o citado julgado do STJ, analisando a moldura hermenêutica circunscrita à Lei de Direitos Autorais, não distinguiu áreas comuns (lobby, restaurantes, bares, piscina, espaço de ginástica) daquelas de uso privativo (como quartos) no ambiente hoteleiro. Tampouco o precedente decidiu questões cotidianas e relevantes, como a de saber se o hóspede de uma (hipotética e improvável) rede hoteleira que não forneça aparelhos de rádio, televisão ou congêneres, que ouvir canções em seu aplicativo do Spotify durante sua estadia também caracteriza fato gerador ao “tributo” cobrado pelo ECAD.
Ou seja, o STJ realizou uma subsunção acrítica da questionável ficção jurídica da Lei 9.610/98. Como resultado do Recurso Repetitivo, uma vez que um titular de estabelecimento hoteleiro queira questionar a política de cobrança do ECAD fincada em local de possível utência de obras musicais em quartos: (i) deve o Juízo singular realizar julgamento de improcedência liminar do pedido (art. 332, III, do CPC/2015); ou (ii) uma decisão judicial pertinente, se objeto de recurso, deverá ser mantida ou reformada para manter a higidez da decisão do STJ (art. 932, IV, ‘b’, e V, ‘c’, do CPC/2015). A vitória do ECAD foi mesmo histórica.
Nesse contexto, a pasteurização de tratamento de zonas com regras sociais tão diferentes (quartos – privacidade vs. áreas comuns do hotel – convívio social, regras de etiqueta, convivência com terceiros), sem dúvida facilita a fiscalização do ECAD, traz mais segurança e previsibilidade nos critérios de aplicação da Lei, mas, simultaneamente, cristaliza uma ficção jurídica tosca e inconstitucional. É a conhecida estabilização da injustiça.
Tal hermenêutica do STJ não é, contudo, surpreendente. Exemplificativamente, (a) este ano o mesmo sodalício[8] entendeu que se o motorista do ônibus – quiçá sem o conhecimento do empregador – ligar seu rádio de pilha para conduzir os passageiros enquanto satisfaz sua estética sonora pessoal, deve a sociedade empresária dos serviços de ônibus pagar ao ECAD, pois o veículo seria um local de frequência coletiva; e (b) em 2017 o Tribunal Superior compreendeu[9] que o acesso à música na internet por streaming, independentemente de onde está o destinatário, também seria local de “frequência coletiva”.
Porém, muito além de conduzir interpretações extensivas de ficções jurídicas peculiares somadas à uma presunção de utência, é curioso notar que a decisão em recurso repetitivo (que tanto afeta as receitas dos entes hoteleiros) não está em conformidade com os próprios precedentes do STJ, levando a crer que o art. 926 do CPC/2015 seria mera “carta de intenções”. A título exemplificativo, o mesmo quarto de hotel ou motel é corretamente tratado como se residência privada fosse (destarte, o oposto de frequência coletiva) para efeitos penais[10]. Logo, existe uma espécie de “carnaval” conceitual sobre o que é frequência coletiva, e, com a micareta significativa[11], fato é que a privacidade quanto ao hábito dos consumidores (em sua reclusão no quarto de hotel) é melhor tutelada contra o Poder de Polícia do Estado que diante do private power do ECAD.
Se tal órgão fracionário de direito privado (2ª Seção) não leva em consideração hermenêutica correta de outra fração do mesmo Tribunal (3ª Seção), imagina-se que, na soma dos precedentes narrados, por dever de coerência e integridade, o STJ há de reconhecer ao ECAD a legitimidade de mais outra forma de cobrança. Qual seja: ventilar fatos geradores diretos aos aplicativos de intermediação de hospedagem ao estilo Airbnb, já que sendo a “internet” um local de “frequência coletiva”, e havendo nos imóveis disponíveis para hospedagem acesso à internet, dever-se-ia impor o mesmo ônus suportado pela cadeia hoteleira à referida plataforma e seus beneficiários. A fattispecie histriônica antes narrada tem mesmo um intuito provocativo: catalisar o estranhamento do leitor, fazendo-o refletir sobre qual seria a pior das seguintes posições: a isonomia do injusto (repartição de malefícios), ou a limitação da injustiça (circunscrevendo-a aos hotéis, mas excluindo outras formas de hospedagem ultra lucrativas).
Na contemporaneidade, além das tradicionais formas privadas de falsear a disputa de mercados (art. 195 da Lei 9.279/96), o tratamento assimétrico do perfil regulatório/judicial/legislativo – a promover vilipêndios à isonomia formal e material – também pode estimular situações jurídicas de deslealdade competitiva[12]. Fato é que diante de mais uma relevante sucumbência ao mercado hoteleiro, a continuidade de um tratamento desigual e pior àquele recebido pelas plataformas de intermediação de hospedagem, bem como a interpretação extensiva favorável ao ECAD do que seja frequência coletiva, é matéria a ser tratada com enorme parcimônia. Nessa esteira, será muito bem-vindo o exercício do controle de constitucionalidade por parte do STF em tais matérias, pois a estabilidade jurídica da injustiça é mesmo recorrente, segura e equivocada.
[1] Em polêmica decisão deste ano, o STJ compreendeu que a utência de imóveis residenciais para tal finalidade comporta forma de hospedagem: “No contexto, portanto, a hipótese dos autos se equipara à nova modalidade de hospedagem, surgida nos dias atuais marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro lado, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo” STJ, 4ª Turma, REsp 1.819.075/RS, Rel. Min. Raúl Araújo Filho, publ. DJ 27.05.2021.
[2] STJ, 2ª Seção, REsp 1.870.771/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, J. 24.03.2021.
[3] LDA: “Art. 68. Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas. (…) § 3º Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas”.
[4] “Uma ficção jurídica, com efeito, é a declaração de que o direito considera algo verdadeiro mesmo que não o seja” VANDEVELDE, Kenneth J. Pensando Como Um Advogado. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 137.
[5] Por exemplo, no campo das patentes, o sistema da Lei 9.279/96 importa que, uma vez concedida, a patente de invenção tem uma tutela de vinte anos (art. 40 da LPI), contados retroativamente da data do depósito do pedido a fortiori. A ficção é a proteção retroativa no tempo (art. 44 da LPI) que só vige se, fato futuro e incerto, a patente for concedida.
[6] “A ficção jurídica consiste na equiparação voluntária de algo que se sabe desigual (…) – por vezes também em pôr como desigual o que se sabe igual (…) Na verdade, é apenas uma forma de fugir aos problemas. Mesmo que se permita ao legislador, quando muito, proceder desse modo, nunca a ciência do direito se pode tranquilizar com isso. A ficção, em virtude do efeito sugestivo da formulação, comporta o perigo de que passe desapercebida a diferença existente de facto entre F2 e F1 e se estenda por isso a equiparação para além da medida do razoável, do materialmente defensável” LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 240-243
[7] CTN: “Art. 79. Os serviços públicos a que se refere o artigo 77 consideram-se: I – utilizados pelo contribuinte: a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer título; b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento”.
[8] STJ, 3ª Turma, REsp 1735931/CE, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, publ. DJ 15.03.2021.
[9] Já se teve a oportunidade de trazer críticas a tal julgado aqui mesmo no Jota: https://www.jota.info/especiais/o-stj-e-o-streaming-07052017 .
[10] “3. O art. 5º, XI, da Constituição Federal de 1988 consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. 4. No sentido estrito, o conceito em tela comporta as moradias de todo gênero, incluindo as alugadas ou mesmo as sublocadas. O título da posse é, em princípio, irrelevante. Abrange as moradias provisórias, tais como quartos de hotel ou moradias móveis como o trailer ou o barco, a barraca e outros do gênero que sirvam de moradia (…) 5. A jurisprudência dos Tribunais pátrios é assente no sentido de que a autorização do morador da casa é suficiente para validar o ingresso dos policiais na residência. Na hipótese dos autos, é devida a reversão do decisum impugnado, pois, não obstante o consentimento da proprietária do imóvel, trata-se de estabelecimento destinado à hospedagem (hostel), o qual, por conta de sua natureza de moradia, ainda que temporária, exige o consentimento dos hóspedes para a incursão policial, o que não ocorreu. Assim, impõe-se o reconhecimento da ilicitude das provas obtidas por meio da medida invasiva, bem como de todas as que delas decorreram. Precedentes da Quinta e da Sexta Turmas do STJ. 8. Agravo regimental provido para, diante da ofensa à garantia da inviolabilidade do domicílio, absolver os agravantes do crime tipificado no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006” STJ, AgRg no HC 630369/MG, 5ª Turma, Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJ 04.02.2021
[11] “O mundo jurídico é um mundo mesquinho. Ele substitui o mundo dos fatos reais por um universo de palavras. Onde há uma floresta amazônica, o legislador determina que deva existir uma flor de papel. Tudo se converte em papel e em signos gráficos no papel: as palavras. Os próprios juristas passam a vida a investigar palavras, a escrever palavras a propósito de palavras” BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2ª Edição, São Paulo: LEJUS, 1999, p. 51.
[12] Mutatis mutandi: “Para se ter ideia da dimensão do problema, conforme informação da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, 40% dos impostos não recolhidos naquele Estado são devidos por devedores contumazes. 51. Essa distorção da concorrência fica mais evidente no comércio de produtos de alta demanda, elevada carga tributária e baixa margem de lucro, como nos setores de combustíveis, bebidas, cigarros e medicamentos. O comerciante que metodicamente deixa de recolher o ICMS vende seus produtos muitas vezes abaixo do preço de custo, inviabilizando a atividade lícita de seus concorrentes” STF, Pleno, Min. Roberto Barroso, RHC 163334/SC, J. 18.12.2019.
Pedro Marcos Nunes Barbosa – Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio, Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados (pedromarcos@dbba.com.br).
Roberta Mauro Medina Maia – Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio. Advogada (roberta@medinamaia.com.br)
Fotografia: Roberto Grau-Kuntz
ISSN 2509-5692