[Karin Grau-Kuntz]
O caso
As Rés,[1] empresas farmacêuticas nacionais, importaram 30 kg do princípio ativo Dapaglifosina, protegido por patentes da Autora para – nos termos da exceção prevista no art. 43 LPI[2] (exceção bolar) –, produzirem as informações necessárias visando o registro de comercialização de produto genérico ou similar pela agência sanitária (ANVISA).
A Autora, por sua vez, titular de quatro patentes referentes ao princípio ativo Dapaglifosina, entendeu que a regra prevista no art. 43, VII, Lei 9270/96 (LPI) não poderia ser aplicada ao ato de importação em questão, pois que este não teria sido feito com o destino exclusivo permitido, mas, antes, como ato preparatório de comercialização dos produtos registrados, o que caracterizaria violação de suas patentes (art. 42, LPI)[3].
Na tentativa de convencer o Juízo do acerto de sua estratégia empresarial apta a inibir ou fazer cessar a conduta das demandadas, a Autora destacou, primeiramente, que suas patentes só expirariam entre 2027 e 2029. Relatou que, apesar disso, as Rés requereram junto a ANVISA, já entre 2016 e 2017, registros de comercialização para seis medicamentos genéricos e similares à Dapaglifosina. Como consequência do requerimento procedido perante a ANVISA nas datas mencionadas, a demandante acentuou que a concessão dos registros de comercialização dos medicamentos em prol da demandada ocorreria ainda durante o prazo de vigência das patentes. Postulou, ademais, que a concessão de registro de comercialização estaria vinculada à obrigação de comercialização do produto registrado em prazos determinados (365 dias ou 3 anos e 3 meses, a depender da forma como o registro foi requerido, i.e. se sob rito prioritário ou ordinário). Qualificou, ainda, como “grande” a quantidade importada pelas Rés do princípio ativo Dapaglifosina (30 kg), pois que seria suficiente para a produção de 3 milhões de comprimidos (100.000 cartuchos de 30 comprimidos de 10 mg cada), o que, de acordo com a sua opinião, não coadunaria com a restrita finalidade de produção de informações para a obtenção de registro comercial.
Vinculando i) os requerimentos de registro comercial procedidos pelas Rés, ii) a obrigação de comercialização dentro do prazos apontados e iii) a “grande” quantidade importada do princípio ativo Dapaglifosina, a Autora defendeu que a importação do princípio ativo não teria ocorrido com o destino exclusivo de produzir informações para requerimento de registro comercial, de forma que a exceção contida no art. 43, VII, LPI não seria aplicável. Ainda, valendo-se da lição da Profa. Maristela Basso expressa em Opinião juntada aos autos, concluiu que as importações, tais como feitas, na realidade apenas revelariam a intenção das Rés de iniciarem a comercialização de produtos infratores muito antes da expiração das patentes em questão.
A pretensão da Autora foi julgada procedente pelo juízo monocrático.
Contudo, em acórdão proferido em 24 de fevereiro de 2021, o TJ-SP reformou a sentença recorrida, julgando improcedentes os pedidos autorais e dando provimento aos recursos das Rés.[4] Transcreve-se a ementa:
Direito patentário. Ação cominatória (obrigação de não fazer), cumulada com pedidos de índole indenizatória, visando a impedir as rés de comercializarem produtos que violem patentes de princípio ativo tituladas pela autora. Sentença de procedência. Apelações das corrés, as primeiras indústrias farmacêuticas, a derradeira importadora de medicamentos.
Ação que se julga improcedente contra as indústrias corrés. O pedido de registro sanitário de medicamento genérico perante a ANVISA não representa violação à patente, quando feito nos termos da exceção do art. 43, VII, da Lei 9.279/1996, isto é, quando se trate de insumos “destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes”, visando à obtenção do registro de comercialização (“exceção bolar”). Desse modo designa-se, em direito das patentes, a permissão de “entrada no mercado, tão expeditamente quanto possível, de alternativas ao produto patenteado, cujo ingresso pressuponha uma licença de comercialização. Tal é o caso, por exemplo, de medicamentos, sujeitos à regulação da ANVISA, ou de defensivos agrícolas que carecem de autorização do IBAMA, MAPA e, novamente, da ANVISA. Assim, se permite que terceiros realizem os testes e provas necessários ainda durante a vigência da patente, a exclusividade do privilégio dura em direito e na prática o mesmo tempo. Averte-se que a burocracia envolta junto às autarquias e órgãos públicos é por deveras rigorosa, e que um processo administrativo como este, não raras vezes, ultrapassa anos. Portanto, o agente econômico prudente deve iniciar tal mister em período pretérito ao ocaso da patente, mesmo porque o registro sanitário em si não garante uma tutela contra eventual contrafação. Só que tal atitude também não é, por si só, um indício de violação do direito, mas mero exercício de prerrogativa constitucional. Neste contexto, aumenta-se a eficácia do sistema de patentes em assegurar um aumento da competitividade dinâmica, prestigiando, também, o welfare estático-imediato.” (DENIS BORGES BARBOSA e PEDRO MARCOS NUNES BARBOSA). Doutrina de EDUARDO RIESS. Precedente da 2ª Câmara de Direito Empresarial deste Tribunal (AI 2018558-25.2019.8.26.0000, RICARDO NEGRÃO). Não há ilícito, de resto, como ensinam os mesmos doutrinadores, no uso sem intuito comercial de fármaco, ainda que concomitante ao período de vigência de patente (mesmo art. 43, inc. I).
Ação que se julga improcedente, por igual, contra a corré importadora, que apenas viabiliza a aquisição da substância por farmácias de manipulação, modalidade que cabe noutra exceção do art. 43, da Lei 9.279/1996, aquela do inc. III (“O disposto no artigo anterior não se aplica: […] à preparação de medicamento de acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional habilitado, bem como ao medicamento assim preparado; […]”). Reforma da sentença recorrida. Ação julgada improcedente. Recursos das corrés providos.
Ainda que não fosse a exceção bolar, o deferimento do pedido de registro sanitário somente implicaria violação às patentes das autoras, se e quando comercializado o medicamento genérico, durante a vigência das patentes. Sem isso não há ato ilícito, como decorre do mesmo art. 43, agora inciso I, da Lei 9.279/1996, que excepciona a exclusividade patentária frente a “atos praticados por terceiros não autorizados, em caráter privado e sem finalidade comercial, desde que não acarretem prejuízo ao interesse econômico do titular da patente”.
Reforma da sentença recorrida. Ação julgada improcedente. Recursos das corrés providos.
[Observação: adiciono, neste passo, as pertinentes considerações do amigo Gabriel Di Blasi em relação ao trecho citado do Acórdão, a quem muito agradeço a leitura cuidadosa do artigo:
“No caso especifico, eu tenho a divergir, pois os atos praticados pelas rés não são de caráter privado pessoal e nem são sem finalidade comercial, pois a intenção das rés é obter um registro de comercialização se beneficiando da exceção bolar prevista em Lei. Tanto é assim, que após a todas as etapas cumpridas para obtenção do registro elas terão a autorização para comercializar o referido medicamento. Essa é a presunção, ou seja, de comercialização. Caso contrário, não faria sentido a existência dessa exceção na Lei.
Ainda, os atos praticados no inciso I são distintos dos atos praticados no inciso VII do artigo 43. O primeiro são para atos que possuem caráter privado de uso pessoal, não comercial, enquanto o segundo possui caráter comercial, ou seja, uso não pessoal, que visa atender uma determinada faixa de pacientes da população. Assim, caso não houvesse a exceção bolar, esse ato das Rés estaria sim violando a patente, pois não há como vestir o inciso I do artigo 43 no referido ato.”]
Comentários
A consideração dos argumentos apresentados pela Autora dão ensejo às seguintes questões:
– Requerimentos de comercialização de medicamentos genéricos e similares procedidos durante a vigência de patentes, vinculadas ao medicamento de referência, podem ser considerados como indicativo de intenção de comercialização e, por consequência, de violação de patente?
– É juridicamente possível arguir a eventualidade futura de comercialização de medicamentos genéricos e similares registrados para caracterizar, no presente, violação de patente?
– Uma eventual obrigação de comercializar medicamento registrado junto à ANVISA pode, de modo geral, ser considerada como indício de iminente violação de patentes?
– A quantidade importada (30kg) do princípio ativo Dapaglifosina pode ser considerada como indício de iminente violação das patentes da Autora?
Requerimentos de comercialização de medicamentos genéricos e similares procedidos durante a vigência de patentes vinculadas ao medicamento de referência podem ser considerados como indicativo de intenção de comercialização e, por consequência, de violação de patente?
Para responder a crucial proposição é necessário, antes de mais, bem compreender as razões que levaram o legislador a prever a limitação do art. 43, VII, LPI (exceção bolar).
O direito de patente é garantido tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país ou, em outros termos, para fomentar o bem-estar social.[5] De maneira sucinta, o fim perseguido é alcançado por duas vias:
– pela da garantia de um privilégio (uma vantagem concorrencial), que funciona como incentivo aos inventores para que assumam os riscos vinculados a investimentos em projetos de desenvolvimento de novas tecnologias (inventos);
– pelo incremento da concorrência de imitação ao fim do privilégio, fator que gera alternativas nos mercados, preços e qualidades melhores (temporariedade / adequação econômica da duração do privilégio/disponibilização do invento à sociedade).
A interação desses elementos desponta, por exemplo, na leitura conjunta dos já mencionados art. 42 e 43, VII, da LPI. Nesse sentido a lição da Profa. Maristella Basso, retirada de Opinião juntada aos autos do caso em análise:
Trata-se da limitação conhecida por “Exceção Bolar”, que consiste no uso do objeto da patente em testes para a obtenção de aprovação sanitária, visando acelerar a introdução, no mercado, de medicamento em domínio público. Acontece quando o concorrente produtor de medicamento equivalente (ou similar) pode tomar medidas relativas à demonstração de bioequivalência do produto ainda na vigência da patente sem que tais medidas configurem infração. Se não houvesse a “Exceção Bolar” [nota no original], os fabricante desses, como bem observa Elza Moreira de Castro, precisariam esperar até a expiração do prazo da patente para começar a produzi-los e, só então, solicitar a aprovação das autoridades sanitárias. Isso significaria uma extensão de facto do prazo da patente, uma vez que os medicamentos concorrentes deveriam passar anos para entrar no mercado. (grifo acrescentado)
Considerando que o almejado incremento do bem-estar social é alcançado com a conclusão do processo descrito, i.e., com a disponibilização do invento à sociedade, a extensão de fato (ainda que fosse por um único dia) da exclusividade para além do período de vigência da patente implicaria no retardamento de sua consecução. A limitação prevista no art. 43, VII, LPI, tem assim por fim prevenir esta situação e garantir que a finalidade do sistema de patente seja pontualmente alcançada.
Neste passo, destaca-se a independência entre registro de comercialização e comercialização. Como um pré-requisito para a comercialização, o registro de comercialização antecede a comercialização e, consequentemente, não se confunde com ela.
Efetivamente, o registro de comercialização de um medicamento genérico ou similar e a patente vinculada ao medicamento que lhe serve de referência convivem pacificamente. Isto ocorre não apenas em razão da permissão contida no art. 43, VII, LPI, mas também pelo fato de a manutenção de um registro de comercialização não ter o condão de interferir no gozo do direito exclusivo pelo titular da patente.
Isto em conta conclui-se que, seja por razão legal (art. 43, VII, LPI) ou até mesmo factual (a existência de registro de comercialização em nada afeta o exercício do direito de patente), a mera existência de registro de comercialização, ou seu requerimento, ou, ainda, a prática de atos destinados exclusivamente a produzir informações para requerer tal autorização em si considerados, não podem ser invocados como indicativo de violação de patente. Isto se aplica independentemente do momento, em relação ao tempo de vigência da patente, em que o registro foi requerido. Compreender o contrário levaria ao esvaziamento da regra do art. 43, VII, LPI.
Correto, assim, o entendimento expresso no Acórdão em análise de que as Rés,
(…) submetendo ao órgão competente, a Agência Nacional de Vigilancia Sanitária Anvisa, pedido de registro sanitário de medicamento genérico (… ), só por isso não infringiram a Lei 9.279/1996, que permite a utilização de produto patenteado em determinadas situações.
É juridicamente possível arguir a eventualidade futura de comercialização de medicamentos genéricos e similares registrados para caracterizar, no presente, violação de patente?
Efetivamente, o mesmo argumento já havia sido arguido em disputas anteriores que visavam impedir registro de comercialização de medicamentos genéricos ou similares durante a validade de patentes vinculadas ao medicamento de referência.[6] A resposta a questão proposta é encontrada no corpo do Acórdão em análise:
Ainda que não fosse a exceção bolar, o deferimento do pedido de registro sanitário somente implicaria violação às patentes das autoras, se e quando comercializado o medicamento genérico, durante a vigência das patentes. Sem isso não há ato ilícito, como decorre do mesmo art. 43, agora inciso I, da Lei 9.279/1996, que excepciona a exclusividade patentária frente a “atos praticados por terceiros não autorizados, em caráter privado e sem finalidade comercial, desde que não acarretem prejuízo ao interesse econômico do titular da patente.
Supor que certamente haverá infração por parte das corrés, como o fazem as autoras, é mera conjectura, ainda que a quantidade de produto importado seja aparentemente excessiva.
Nesse passo palavra “conjectura” merece especial destaque.
Uma eventual obrigação de comercializar medicamento registrado junto à ANVISA pode, de modo geral, ser considerada como indício de iminente violação de patentes?
É necessário esclarecer, nesse passo, que os pedidos de registro de comercialização em questão, procedidos pela Rés, foram requeridos sob ritos diferentes. Efetivamente, as demandadas requereram entre 2016 e 2017 o registro comercial para seis medicamentos genéricos e similares relacionados à Dapaglifosina. Um dos registros foi requerido em 2016 sob rito prioritário, enquanto os restantes o foram sob rito ordinário.
Com relação ao pedido requerido sob rito prioritário, que foi concedido antes do julgamento que deu origem ao Acórdão em análise, a Autora postulou que, em atenção ao artigo 8º da Resolução da Diretoria Colegiada (“RDC”) nº 204/2017, o medicamento registrado deverá ser comercializado no prazo de até 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias, contados a partir da data de publicação do registro.
Ocorre, porém, que a priorização de análise em questão foi requerida em 2016, nos termos da então vigente Resolução-RDC nº 37/2014. Tal Resolução não previa a obrigação de comercialização do produto nos 365 dias após a concessão do registro, como faz a Resolução-RDC nº 204/2017 invocada.
Decorre, em conclusão, que, embora o registro comercial só tenha sido concedido em 2020, quando já vigente a Resolução-RDC nº 204/2017, a obrigatoriedade de comercialização no prazo de 365 dias após o registro não seria aplicada ao caso, pois que o requerimento de exame prioritário é anterior à vigência desta norma. Não é possível desconsiderar o fato de que além do princípio tempus regit actum ser pertinente, que o conteúdo normativo discutido na resolução tem natureza de regra de direito substantivo, e não adjetivo.
No que tocam os cinco pedidos restantes, requeridos sob o rito ordinário, a Autora postulou que a comercialização dos medicamentos genéricos e similares deverá ser iniciada em até 3 anos e 3 meses a partir da data de concessão do registro. Para embasar este entendimento reportou ao art. 12, § 8º, II, da Lei nº 6.360/1976 e Resolução ANVISA nº 317/2019, que determina que não será possível a revalidação de registro de comercialização para um medicamento que não tenha sido comercializado durante pelo menos o tempo correspondente aos dois terços finais do período de validade do registro expirado.
Salta aos olhos o fato do prazo de 3 anos e 3 meses em questão não ser condição imposta ao registro comercial, como postulou a Autora, mas antes voltada à revalidação de um registro anteriormente concedido.
Note-se que as observações acima procedidas relacionadas à aplicabilidade das Resoluções invocadas pelas Rés não foram objeto de discussão nos autos. Tendo sido porém percebidas no curso da análise aqui oferecida, entende-se adequado mencioná-las.
Para além disso, mesmo que fosse sustentável arguir com a obrigação de comercialização dos medicamentos registrados, isto não expressaria necessariamente indício de iminência de comercialização.
Há, por exemplo, casos em que a validade de uma patente é contestada. Nesta hipótese, apesar da patente continuar vigorando até que sua nulidade venha de fato a ser declarada/decretada, a possibilidade de questionar sua validade permite que se especule com a hipótese de sua anulação.
Recordando a finalidade perseguida pela fonte normativa densificada no texto do art. 43, VII, LPI, a existência de registro de comercialização de produto concorrente frente à hipótese de declaração/decretação de nulidade da patente é desejada, pois que impediria a constituição de um monopólio de fato em torno de uma tecnologia não protegível.
No que toca o caso em análise, é interessante mencionar a discussão que se travava no STF relativa à extensão do prazo de vigência de patente, como prevista no parágrafo único do art. 40, LPI (ADI 5529). É possível supor que as Rés requereram os registro de comercialização para os medicamentos genéricos e similares já em 2016 e 2017, crendo (boa-fé subjetiva) que o STF decidiria pela inconstitucionalidade do dispositivo, seguindo a regra geral dos efeitos temporais do ato nulo (“ex tunc”), o que, efetivamente, ocorreu em relação aos produtos farmacêuticos, resultando na correção dos prazos de vigência das patentes da Autora.
Evidentemente, o valor dessa informação para o caso em estudo não tocou o mérito da discussão sobre a (in)constitucionalidade do preceito da LPI, da mesma forma que não tocaria, na hipótese de contestação de validade de patente, o mérito da discussão sobre sua nulidade. Ao contrário, sua importância desponta vinculada a uma forma inteligente de consideração dos fatos e da finalidade da exceção bolar.
O Acórdão em análise foi marcado por essa forma inteligente de interpretação, como desponta, entre outras, na seguinte passagem:
“Voltando aos fatos do caso em julgamento, tem-se que as indústrias corrés agiram como empresárias cautelosas, importando antecipadamente o fármaco, para poderem, quando vencida a patente, já então terem as necessárias autorizações para que seus produtos chegassem rapidamente ao mercado. Se assim não procedessem, depois de longo período de validade do registro exclusivo, ainda teriam que aguardar muitos anos para, só então, disponibilizar remédios à população. Remédios que, possivelmente, tal a rapidez do avanço da ciência, estariam então superados por outros mais modernos.”
Tendo em conta estes tipos de situações, afirmar que uma eventual obrigação de comercialização indicaria necessariamente uma intenção de comercialização teria por consequência o esvaziamento da limitação prevista no art. 43, VII, LPI. O que se afirma ganha ainda mais relevância quando se tem em conta que tal obrigação não força o requerente a de fato comercializar o produto registrado, mas, ao contrário, seu descumprimento, no máximo, implicará em multa ou perda do registro.
A quantidade importada (30kg) do princípio ativo Dapaglifosina pode ser considerada como indício de iminente violação das patentes da Autora?
Como acima mencionado, a Autora defendeu que a quantidade do princípio ativo importado pelas Rés seria maior do que aquela necessária para cumprir com os fins de produzir dados e informações necessários à obtenção de registro de comércio. Nesse sentido informou nos autos que a quantia importada seria suficiente para a produção de 3 milhões de comprimidos (100.000 cartuchos de 30 comprimidos de 10 mg cada). Neste contexto, i.e., tendo a relação “30 kg – 3 milhões de comprimidos” como base de sua argumentação, entendeu por qualificar a quantidade importada como “grande” e viu comprovada a intenção de comercializar.
Ocorre, porém, que a relação “30 kg – 3 milhões de comprimidos” e a classificação da quantidade importada como “grande” não é critério adequado para a determinação da aplicação da limitação prevista no dispositivo em questão.
Para melhor compreender o postulado, adota-se uma perspectiva diversa em relação à quantidade importada pelas Rés. Considera-se, então, o número de diabéticos no Brasil – cerca 12,5 milhões e a dosagem diária recomendada do medicamento de referência (Forxiga)- 1 comprimido de 10 mg.
Sob esta perspectiva parece ser plausível supor que, se as Rés tivessem de fato a intenção de comercializar os produtos para os quais requereram registros durante a vigência das patentes da Autora, deveriam ter importado uma quantidade muito maior do que 30 kg do princípio ativo, sob pena de não serem capazes de satisfazer o mercado. A conclusão persiste mesmo se considerarmos que apenas uma parte dos diabéticos no Brasil sejam tratados com o medicamento de referência.
Esta perspectiva é oferecida ao leitor para demonstrar, por uma, o quanto é frágil a argumentação da Autora. Basta vincular a quantidade de 30 milhões de comprimidos às necessidades do mercado para indicar que a importação dos 30 kg não poderia ser invocada como indício da intenção das Rés de iniciarem a comercialização de produtos infratores, antes da expiração das patentes da Autora e, por consequência, para afastar a aplicação da “exceção bolar”.
Por outro lado, lança-se mão dela para frisar que, seja a relação” 30 kg – 30 milhões de comprimidos” ou “30 milhões de comprimidos – demanda muito maior no mercado”, ambas têm em comum o fato de serem irrelevantes para a apuração da aplicação ou não aplicação da “exceção bolar”. Efetivamente, o que interessa em primeira linha é verificar a finalidade da importação do princípio ativo, i.e. se estava voltada ou não à produção de informações e dados experimentais para fins de obtenção de registro comercial.
No caso em análise as Autoras não lograram demonstrar que as Rés estariam empregando os 30 kg do princípio ativo para outros fins que não àquele permitido pela exceção bolar.
No Acórdão em análise este aspecto, dotado de grande importância quando se trata de verificar a aplicação da limitação prevista no no art. 43, VII, LPI, restou bemesclarecido na seguinte passagem:
Pouco importa, então, o volume de Dapagliflozina importada, desde que empregada para fins exclusivamente legais, que não podem ser comerciais; isto é o que efetivamente importa.
Conclusão
Apesar da existência de julgados anteriores que já rechaçavam pretensões de titulares de patente no sentido de impedirem o registro de comercialização de medicamentos genéricos e similares durante a vigência de patente relativa ao medicamento de referência, o Acórdão em análise acertadamente e de maneira contundente ressalta a importância da “exceção bolar” para o direito de patentes. Neste contexto nunca é demais recordar que a receita do sucesso deste sistema, que culmina no incremento de bem-estar social, é encontrada em uma situação de monopólio que se estende por um tempo estritamente determinado. A possibilidade de se alcançar registro de comercialização para produto concorrente durante a vigência da patente é necessária como corretivo eficaz a uma possível situação indesejada de criação de um monopólio de fato ao fim da vigência do privilégio.
[1] O caso ainda envolveu uma segunda Ré, uma farmácia magistral que havia importado o princípio ativo Dapaglifosina para este fim (manipulação). Para além do entendimento de descabimento de litisconsórcio, dada a diversidade de posições processuais entre as Rés e que só foi mantido por razões de economia processual, o TJSP, aplicando a exceção do art. 43, III, da LPI, também entendeu improcedentes os pedidos formulados contra a segunda Ré.
[2] Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica: (…) VII – aos atos praticados por terceiros não autorizados, relacionados à invenção protegida por patente, destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes, visando à obtenção do registro de comercialização, no Brasil ou em outro país, para a exploração e comercialização do produto objeto da patente, após a expiração dos prazos estipulados no art. 40.
[3] Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos: I – produto objeto de patente; II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado. (…).
[4] TJSP, AC nº 1023176-84.2020.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Cesar Ciampolini, j. em 24/02/2021.
[5] Art. 5, XXIX, da Constituição do Brasil, a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, […] tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.
[6] Vide, por exemplo, TJSP, AC nº 1001930-76.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Lígia Araújo Bisogni, j. em 17/02/2014.
Karin Grau Kuntz – doutora e mestre em direito pela Ludwig-Maximilians-Universität München; Würtenberger Rechtsanwälte (München)
ISSN 2509-5692