[Pedro Marcos Nunes Barbosa]
No dia 21/05/2021 foi publicado julgado monocrático da lavra do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nos autos do Recurso Especial 1.891.973/RJ, no qual contendiam o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Abril Marcas e Bebidas Grassi. A lide dizia respeito a impugnação (pela Bebidas Grassi) de ato administrativo praticado pela autarquia federal que resultou na propriedade do sinal “Capricho” – à Abril Marcas.
Os fatos trazidos a lume denotavam que a conhecida sociedade do ramo comunicacional, de fato, gozava da titularidade de marca com o elemento nominativo “Capricho” há décadas, e que, em 30/12/1999, procedeu ao pedido de registro de signo idêntico (número 821919695), porém no mercado de bebidas. Contudo, pouco meses antes (no dia 10 de junho), no mesmo ano de 1999, a companhia Grassi depositara a marca “Capricho” (registro ativo de número 821767941) para a classe de sua atuação. O INPI, entretanto, deferiu o pedido de propriedade da sociedade Abril, no que gerou a insurgência de Grassi ventilando que a concomitância de titulares de sinal nominativo colidente no mercado de bebidas poderia ensejar a confusão dos consumidores.
Acolhendo o pleito da sociedade originária do ramo de bebidas, o Juízo Federal da 31ª Vara Federal do Rio de Janeiro (na bem fundamentada sentença da professora mestra Caroline Somesom Tauk) julgou procedente o pedido de invalidação do ato administrativo do INPI, tendo a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), na minuciosa pena da professora doutora Simone Schreiber, mantido a decisão de primeira instância.
Em outras palavras, a utência e propriedade pretéritas de signo idêntico, porém em mercado distinto, não seria garantia de titularidade em um novo nicho.
A decisão oriunda de Órgão singular do Poder Judiciário vinculado à Corte Superior acabou por negar provimento ao remédio processual voluntário da companhia de mídia, merecendo destaque três elementos da fundamentação: (a) a discussão sobre a notoriedade do signo distintivo e a sua prova; (b) o debate sobre a anterioridade; e (c) a aplicação da Teoria dos Atos Próprios no ambiente da propriedade industrial.
(a) Fama – alto renome vs. “Auto renome”
Apesar de reputação, clientela e marcas serem institutos correlacionados, eles não se confundem. Nas palavras do maior causídico brasileiro[1] do século XX: “Reputação não é clientela; esta pode emanar daquela, com ela não se confunde. Reputação é o crédito ou renome que gozam os produtos no mercado. Clientela é o complexo das pessoas habituadas a negociar com um estabelecimento comercial ou industrial; é a freguesia, the degree of favor enjoyed by a particular shop trade as indicated by its custom, na definição do CENTURY DICTIONARY”.
De outro lado, é inegável que as marcas servem como atalhos comunicativos eficientes[2], em especial quando são intrinsecamente distintivas.
Tomando-se em consideração de que é possível, em termos reputacionais, se cogitar quatro vetores de cognição do signo alheio, é possível sumarizar a hierarquia da popularidade em evolução entre: (i) os sinais comuns e incógnitos (quiçá a maioria deles); (ii) os sinais que não devem ser ignorados pelos agentes econômicos do setor (art. 124, XXIII, da Lei 9.279/96); (iii) os sinais que são famosos setorialmente (Art. 6, bis de CUP, 16.2 do Acordo TRIPS e 126 da Lei 9.279/96); e (iv) os excepcionais sinais que transbordam fama até em setores outros que aquele(s) de sua atuação (art. 125 da Lei 9.279/96).
Para se galgar a elite reputacional-formal em termos de marcas (iv), é preciso satisfazer a um rigoroso (ônus da prova) e longo processo administrativo junto ao INPI, pagar um caro preço-público pelo serviço e, então, figurar na lista taxativa–exaustiva-cerrada da autarquia[3]. Pelos dados do INPI, apenas cento e vinte e dois signos se encontram no “Olimpo distintivo” (iv) no Brasil.
Apesar de o sinal “Capricho” não ser participante do “clube-seleto”[4] (iv), não é vedado ao seu titular arguir sua fama, mas tal seria uma forma de adulação própria, um “auto-renome”, jamais a classificação jurídica do alto renome. Por tais razões, o Ministro relator bem pontuou que “reconhecimento da notoriedade de uma marca não decorre de um julgamento meramente subjetivo, fundado em meras alegações trazidas pelo próprio titular da marca, mas depende da verificação de um certo grau de reconhecimento da marca pelo público consumidor relevante a ser devidamente demonstrado em juízo, o que não ocorreu no presente caso” (voto Min. Paulo Sanseverino).
Aliás, se o Poder Judiciário se imiscuísse em qualificar um signo (fora da lista) como de alto-renome, sem que o INPI decidisse um processo administrativo pertinente, tal poderia importar em vilipêndio à cláusula fundacional da República (art. 2º da CRFB).
(b) Anterioridade e prerrogativas
A pós-modernidade é afeita à especialização. No ambiente da advocacia, da medicina, da judicatura, das engenharias – verbi gratia – a segmentação profissional tem sido vista como um dos vetores de aumento da qualidade de cada um de tais misteres. Logo, quando se constata um único estabelecimento comercial que se diz vocacionado, simultaneamente, às comidas mexicana-japonesa-italiana, é provável que tal não atenda a um paladar mais refinado. Pelas mesmas razões, é mais comum que a atividade empresarial se especialize, do que espraie braços para ramos completamente diversos.
Sendo a propriedade intelectual a regulação de bens de produção de natureza imaterial, é consentâneo com uma ordem econômica fundada no capitalismo que cada titularidade tenha como contrapartida uma função. Por isso, as marcas ostentam da exclusividade setorial, mas raramente extra-setorial. Seria desproporcional interditar o acesso alheio a um signo, se o titular sequer explorasse o ambiente mercantil pretendido pelo segundo. Não há função social em qualquer direito de propriedade que apenas sirva para impedir outrem, sem gerar externalidades positivas aos não-proprietários.
Pela mesma razão, o direito empresarial é mais voltado às virtudes (à práxis, ao agir) do que ao talento-latente. O desejo de expandir a atuação empresarial pode existir, é o mesmo legítimo, mas não cerceia terceiros ou garante propriedades correlatas. Assim, a função social exercida na utência-posse no ambiente das revistas há meio século, por exemplo, não pode garantir ao mesmo agente econômico prioridade em um ramo completamente distinto. A tutela da posse ou da propriedade prestigia a quem dela exerça uso, empregue equipe, pague tributos e, por isso, a Constituição da República enfatiza o conteúdo objetivo e não o subjetivo do múnus da titularidade (art. 5º, XXIII – a propriedade atenderá a sua função social[5]). Tal como no item (a), o STJ também acertou em recusar a (b) “anterioridade” fora da especialidade argumentada pela Abril.
(c) A vedação aos atos contraditórios
O único ponto merecedor de crítica do julgado comentado é aquele em que se arguiu a impossibilidade do debate sobre a supressio e a surrectio, pois “O acórdão recorrido, ao consignar que tais institutos apenas se aplicam às obrigações contratuais, foi, também neste ponto, proferido em plena consonância com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça” (voto Min. Paulo Sanseverino).
Factualmente é possível concordar que não houve conteúdo fático a legitimar a aplicação da Teoria dos Atos Próprios ao feito. A circunstância do INPI ter levado mais de década para julgar um processo administrativo, por si só, não é sinal de violação à boa-fé objetiva ou mesmo a cristalização da legítima expectativa do depositante. A demanda, aliás, foi proposta antes do prazo decadencial[6] de cinco anos (art. 174 da LPI) e não se satisfez o ônus probatório quanto à sofisticada aplicação da venire contra factum próprio.
Contudo, não é possível concordar com o ministro-relator quando contrai o plano da incidência do instituto da supressio ao contexto obrigacional. Por exemplo, órgão colegiado da mesma Corte Superior aplicou a Teoria no ambiente (a) dos Direitos Reais e Direitos de Vizinhança[7], além do fato de (b) que outros Tribunais também cotejam o mérito da argumentação da Teoria dos Atos Próprios[8] para dirimir feitos de propriedade intelectual[9].
Pelo contrário, o ambiente de incidência da vedação aos atos contraditórios é sobre toda situação ou relação jurídica de ambiente patrimonial, o que inclui o ambiente das marcas.
O interessante julgado comentado do Tribunal da Cidadania denota a imbricada relação entre o Direito Processual Civil, o Direito Civil, o Direito Administrativo e até o estudo sobre provas no ambiente da propriedade intelectual. Sobrepujando as virtudes ao diminuto vício no julgado, pode-se entender que o precedente[10] do contexto das marcas contribui para a estabilização da segurança jurídica no nicho dos sinais distintivos.
[1] BARBOSA, Rui. As cessões de clientela. Obras Completas de Rui Barbosa – Vol. XL. Tomo I, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1913, p. XIX.
[2] “A trademark seeks to economize on information costs by providing a compact, memorable, and unambiguous identifier of a product or service” LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 161.
[3] Disponível em https://www.gov.br/inpi/pt-br/assuntos/marcas/arquivos/inpi-marcas_-marcas-de-alto-renome-em-vigencia_-18-02-2020_padrao-1.pdf, acessado em 02.06.2021
[4] Do qual muitos querem participar, poucos foram admitidos, e alguns dos admitidos – na opinião deste autor – lá não deveriam constar.
[5] Se a política pública fosse fincada em sujeitos, o texto constitucional deveria ter sido escrito, assim: “o proprietário atenderá a sua função social”.
[6] “Art. 174 – Prescreve em 5 (cinco) anos a ação para declarar a nulidade do registro, contados da data da concessão. Em que pese faça a lei uso da terminologia “prescrição”, é cediço que o instituto, no caso, só pode ser a decadência, que serve para fulminar direitos de natureza potestativa, que se caracterizam pela perda do direito em si, por não ter sido exercido pelo titular, no prazo fixado na lei, de modo contínuo, sem interrupção ou suspensão de nenhuma espécie” TRF-2, 2ª Turma Especializada, Voto-Vista do Des. Messod Azulay Neto, AC 01385597420144025101, DJ 01.12.2016.
[7] STJ, 3ª Turma, Min. Nancy Andrighi, Resp 1096639, DJ 12.02.2009.
[8] Este autor já teve a oportunidade de publicar a respeito no livro “Direito Civil da Propriedade Intelectual”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, cuja 3ª edição está esgotada, mas seu conteúdo segue disponível para download gratuito no sítio https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/direito-civil-da-propriedade-intelectual_dtp.pdf.
[9] “Assim, constata-se a utilização dos produtos patenteados para fins econômicos sem autorização do autor dos inventos, implicando em violação de patente, impondo-se a obrigação de indenizar os danos causados, nos termos do art. 44 da Lei de Propriedade Industrial. As circunstâncias fáticas, bem como o conjunto probatório produzido nos autos, não justificam a invocação pela ré das figuras da supressio, surrectio e venire contra factum proprium. Não se vislumbra nos autos a alegada violação à boa-fé objetiva, ao argumento de inércia do autor por continuar a vender à ré seus produtos juntamente com outros fornecedores mesmo após o ajuizamento da medida cautelar de busca e apreensão, quedando-se silente sobre a situação litigiosa. A simples tolerância do autor em relação à conduta da ré, enquanto aguardava pronunciamento judicial, não significa concordância com a prática adotada pela ré, não caracterizando um desequilíbrio, pelo decurso do tempo, entre o benefício auferido pelo credor e o prejuízo do devedor, elementos essenciais a configurar o instituto da supressio” TJRJ, 17ª Câmara Cível, Des. Elton Leme, AC 2009.001.55589, julgado em 13.01.2010. Ou “A mesma vedação à deslealdade, à má-fé e ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium) deve incidir na proteção patentária, sendo que em alguns ordenamentos o requerimento de patente efetuado de má-fé é crime (como no Código de Propriedade Industrial Macauense, de 1995, que reproduz a lei chinesa – logo a China, ao estabelecer a conduta como crime no art. 262). (fl. 805-806) (…) Por derradeiro, também carece de fundamento a alegação de que, diante dos termos do inciso XXIX do artigo 5.º da Constituição da República, “retirar os direitos de Propriedade Industrial de um inventor sem justo motivo, significa infringir os interesses nacionais estabelecidos na Carta Magna”. Primeiramente porque, no cotejo com os direitos decorrentes do registro da patente, deve prevalecer o interesse social inerente às criações industriais, cuja proteção, como se sabe, é exceção à regra de que permaneçam em domínio público, pois tal privilégio é sempre deferido por prazo limitado e se submete à observância de diversos requisitos, não se podendo olvidar que é de interesse de toda coletividade que não subsista a exclusividade sobre a exploração de determinada criação industrial. Além disso, mesmo que se considerasse proeminente no presente caso os alegados direitos do embargante HÉLIO JOSÉ AYRES MARQUES sobre os inventos em questão, tal premissa não poderia persistir diante da falta de ética que caracterizou a conduta dos réus, cabendo lembrar que a garantia constitucional invocada não pode – nem poderia – validar o registro de patente realizado com evidente má-fé” TRF2, 2ª Turma Especializada, Des. André Fontes, ED em AC 2000.02.01.018537-5, DJ 26.08.2008.
[10] “O precedente formado valerá para o caso julgado e para os casos futuros” MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª Edição, São Paulo: RT, 2017, p. 108.
PEDRO MARCOS NUNES BARBOSA – Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados (pedromarcos@dbba.com.br). Doutor em Direito Comercial, tendo concluído o estágio Pós-Doutoral na mesma USP; Mestre em Direito Civil pela UERJ; Especialista em Propriedade Intelectual na PUC-Rio. Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio.
ISSN 2509-5692