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United States Court of Appeals for the Ninth Circuit – Omega S.A. vs. Costco Wholesale Corporation – Julgamento de 20 de Janeiro de 2015

por Karin Grau-Kuntz

O caso

Em 2004 a empresa americana Costco Wholesale Corporation ofereceu ao público consumidor em suas lojas de desconto 43 relógios de luxo da marca Omega Seamaster por um preço evidentemente mais baixo do que aquele exigido para o mesmo produto por seus concorrentes distribuidores autorizados da empresa suíça Omega, a produtora dos relógios.

O caminho percorrido pelos relógios, desde a produção pela empresa Omega até as prateleiras das lojas da empresa Costco, foi o seguinte: primeiramente a empresa Omega S.A. vendeu os relógios por ela produzidos na Suíça a distribuidores autorizados estrangeiros. A seguir, terceiras partes não identificadas adquiriram os relógios dos distribuidores estrangeiros autorizados revendendo-os, em seguida, à empresa americana ENE Limited, sediada em Nova Iorque. Em um quarto passo a empresa ENE Limited revendeu os relógios à empresa Costco que, então, ofereceu a mercadoria ao público consumidor.

Não há dúvidas de que a primeira colocação do produto no mercado ocorreu de forma legítima, uma vez que pela própria Omega S.A. Note-se, ademais, a posição da empresa Costco como um último elo em uma longa cadeia de vendas. Por fim, é de se presumir que a empresa Omega tenha oferecido os produtos ao distribuidor estrangeiro, que posteriormente os revendeu aos terceiros não identificados, por um preço significativamente menor em relação ao preço oferecido aos distribuidores autorizados nos Estado Unidos. Não fosse assim a diferença de 35% entre o preço dos relógios nas prateleiras das lojas Costco e o preço exigido pelos produtos por distribuidores autorizados Omega nos EUA não teria sido possível (obviamente presumindo que a empresa Costco tenha vendido os produtos com alguma margem de lucro ou, no mínimo, sem qualquer prejuízo). E exatamente esta diferença de percentual no preço final foi o que motivou os distribuidores autorizados Omega a queixarem-se junto à direção da empresa suíça, reclamando estarem sofrendo prejuízos com a concorrência com base em preços significativamente mais baixos.

Uma peculiaridade determinante ao caso remota a aparência dos relógios, notadamente a inclusão em seus versos de um mínimo desenho de um globo – o chamado “Omega Globe Design”, protegido desde de março de 2003 por copyright nos Estado Unidos.

Calcada no copyright sobre o desenho do globo posicionado nos versos dos relógios a empresa Omega – a partir de agora denominada Autora – foi a juízo questionar a revenda dos produtos em causa adquiridos no mercado paralelo pela empresa Costco – agora Ré, alegando a violação de seu copyright, especificamente por meio da importação paralela de trabalho protegido sem a permissão do titular do copyright.

Sobre a questão de importações paralelas de produtos protegidos pelo copyright nos EUA reporto a Comentário já publicado anteriormente no presente periódico e referente ao caso Supap Kirtsaeng v. John Wiley & Sons . Em síntese e apenas para relembrar o cerne da discussão, a questão das importações paralelas – ou da aplicação ou não da first sale doctrine a produtos protegidos pelo copyright – refere-se à legalidade da importação de produtos produzidos legitimamente e colocados no mercado fora do âmbito do espaço geográfico dentro do qual Copyright Act produz efeitos de lei ou, em outras palavras, nos limites do território dos EUA.

Quando da proposição da ação em comento, a jurisprudência americana tendia pela não aplicação da first sale doctrine. Porém, a decisão posterior proferida no caso Supap Kirtsaeng v. John Wiley & Sons reformou este entendimento, um fato que, como será indicado a seguir, acabou afetando a decisão sobre a pretensão da Autora do caso em tela.

A longa jornada jurídica do caso Omega vs. Costco teve seu primeiro desenvolvimento com a decisão proferida em primeira instância, quando prevaleceu o entendimento da Ré, no sentido de que a first sale doctrine seria aplicável, de forma que a Autora não poderia questionar a venda dos relógios, posto seu copyright ter-se esgotado com a primeira colocação legítima do produto no mercado.

No âmbito de apelação a Court of Appeals for the Ninth Circuit reformou a decisão da instância inferior, entendendo que a first sale doctrine não seria aplicável a cópias de trabalhos protegidos fabricadas no exterior. Em seguida o caso foi remetido à Supreme Court, onde quatro juízes manifestaram-se pela Autora e quatro pela Ré. No acórdão foi ainda expressamente mencionado o seu caráter non precedencial.

O caso então retornou a Districtal Court onde, mais uma vez, foi dado ganho de causa à Costco S.A. Neste passo, porém, a argumentação não mais girou em torno da aplicação da first sale doctrine, mas antes esteve calcada na figura de abuso de copyright.

Diante deste resultado a Omega apelou à mesma corte distrital que anteriormente acolhera sua pretensão, contestando a condenação por abuso de copyright. Nesse passo, tendo em conta o desenvolvimento da jurisprudência da Supreme Court no caso Supap Kirtsaeng v. John Wiley & Sons e enfrentando a questão do abuso de copyright, a decisão da Corte em tela agora resultou contrária à pretensão da empresa Omega.

Sobre a segunda decisão da Court of Appeals for the Ninth Circuit

Dos três juízes que compunham a Corte, dois decidiram considerando a questão da first sale doctrine, especificamente trazendo à baila e aplicando o entendimento fixado no caso Supap Kirtsaeng v. John Wiley & Sons, no sentido de que após a decisão proferida neste acórdão teria restado evidente que o direito de controle da Autora teria expirado com a primeira colocação dos relógios no mercado internacional. Nesses termos a subsequente venda dos relógios não constituiria violação de copyright.

Sem aprofundar a questão da first sale doctrine – esta, como mencionado, já foi objeto de considerações anteriores neste periódico, merece destaque o entendimento da juíza Kim McLane Wardlaw que, em contramão a seus colegas de Corte, teve por acertado dar ganho de causa a Costco, mesmo e apesar de recusar a aplicação da first sale doctrine ao caso, já que, em seu juízo, a aplicação ou não da doctrine não teria sido arguida pelas partes durante o processo na instância inferior.

A inserção do desenho do globo no verso dos relógios teria revelado, no entender da juíza Wardlaw, a intenção da empresa Omega de controlar as importações e vendas dos relógios nos EUA. Lançando mão das palavras do juiz da District Court Terry Hatter argumentou que a empresa suíça teria, de forma ilegítima, “utilizado o escudo defensivo do copyright como uma espada ofensiva”.

O copyright é garantido com um fim determinado, isto é ele está voltado à promoção do progresso da ciência e das artes aplicadas. Se seu efeito imediato é assegurar ao autor um retorno justo pelo trabalho criativo que oferece à sociedade, o objetivo maior da proteção não está contido nessa prerrogativa individualista, mas antes será encontrado no incentivo e no estímulo das atividades artística como forma de fomento do bem-estar geral. Esse objetivo maior está incorporado na limitação do copyright no que toca sua duração e contorno. Seguindo esta linha de raciocínio e ainda o desenvolvimento jurisprudencial, na ausência de benefício à coletividade a garantia do monopólio do copyright será injustificada.

A juíza Wardlaw seguiu então argumentando que o risco de que o titular do copyright venha a abusar de seu direito é inerente à própria garantia do direito. Por sua vez este risco inerente poderá tomar corpo em três condutas diversas: a) pelo exercício do direito exclusivo de forma que viole o direito antitruste; b) pela extensão ilegal do monopólio para além de seus limites, ou, ainda, c) pelo seu exercício de forma não correspondente ao cumprimento da política pública que legitima e justifica a garantia legal.

No caso em análise e em termos práticos a inserção do desenho do globo protegido pelo copyright nos versos dos relógios e a subsequente alegação de violação do direito na comercialização dos relógios pela Costco traduziria uma tentativa de estender aos relógios, objetos que em razão de sua função utilitária intrínseca não são passíveis de proteção por copyright, a exclusividade garantida em relação ao desenho do globo. Aqui estaria caracterizado um abuso de copyright pela tentativa de extensão do monopólio para além de seus limites.


Comentário

O efeito imediato do copyright – assim afirmou a juíza Wardlaw – é assegurar ao autor um retorno justo pelo trabalho criativo que oferece à sociedade. O objetivo maior da proteção, porém, é promover the progress of science and useful arts. Em outras palavras, a motivação jurídico-política da garantia de proteção ao autor (e ao inventor) no sistema americano desponta expressa a nível constitucional na fórmula citada.

No Brasil a falta de menção constitucional expressa de uma motivação jurídico-política nos moldes da do direito americano estimula uma tendência de redução da proteção autoral ao seu aspecto de exclusividade (ou, para quem assim entenda, ao seu aspecto de propriedade). Essa redução estimula a compreensão do instituto como garantido apenas em função do e para o autor.

Entendo, porém, que o ordenamento jurídico brasileiro não garante a proteção autoral centrando-se apenas nos interesses individuais do autor. Os contornos do direito de autor devem ser assim encontrados em sua interação sistêmica com outros interesses acolhidos e direitos também garantidos pelo ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, se o direito de autor brasileiro tem por fim imediato assegurar ao autor um retorno justo pelo trabalho criativo que oferece à sociedade, esse fim não se esgota em si mesmo.

Tendo em conta o âmbito limitado deste comentário restará aberta a questão se seria possível afirmar que o objetivo maior do direito de autor brasileiro também seria to promote the progress of science and useful arts. Ainda, não será possível determinar os termos exatos da política pública perseguida pelo direito de autor brasileiro. Para o momento o importante é frisar que, não se esgotando a proteção autoral em si mesma, pronuncia-se evidente um fim mediato de natureza pública ou coletiva (o valor social do trabalho criativo).

Isto posto, passo a apresentar um modelo desenvolvido a partir das categorias de abuso propostas pela juíza Wardlaw. Este modelo parece-me dotado de grande valor instrumental para a análise de abuso de direito em geral e, mais especificamente, para a análise de abuso de direito de Propriedade Intelectual em geral. Assim:

a) Primeira categoria, ou categoria “externa” – Tendo em conta os fins imediatos e mediatos do direito garantido, trata-se aqui de uma categoria de abuso que invoca, em primeira linha, os efeitos do exercício do direito em relação ao fim mediato da garantia legal. O fim mediato, por sua vez, encontra-se na relação entre o direito e o contexto jurídico-social (política pública);

b) Segunda categoria, ou categoria “linear” – Considera-se aqui, em primeira linha, os efeitos do direito exclusivo quando em interação com o âmbito protegido por outros direitos garantidos pelo ordenamento jurídico. O abuso é, então, caraterizado no âmbito de uma relação linear entre direitos garantidos;

c) Terceira categoria ou categoria “interna” – Trata-se aqui de um desvio na finalidade do direito: o direito foi desenhado com um fim determinado e é empregado de forma diversa, isto é, voltado à realização de um fim diverso.

Essas categorias despontam em princípio entrelaçadas, especialmente quando consideradas de baixo para cima: o desvio na finalidade de um direito geralmente tocará o âmbito de outros direitos garantidos e afrontará a política pública perseguida pelo direito desviado. Assim ocorreu no caso em comento e em consequência disso é (e no caso em tela de fato foi) possível afirmar, quando a questão girar em torno de um conflito entre direito de propriedade intelectual e normas de proteção da concorrência, não ser necessário demonstrar os efeitos negativos da conduta para a concorrência, posto o abuso já estar caracterizado no âmbito “interno”, i.e. pelo desvio de finalidade do próprio direito de propriedade intelectual.

Porém, e dando destaque a palavra “geralmente”, as categorias de abuso nem sempre serão cumulativas. Um exemplo aqui pode ser fornecido com o controvertido caso das peças must-match de reposição de automóveis, onde o abuso não é “interno”, isto é, onde não houve desvio de finalidade, mas antes “linear” e “externo”, tocando as duas outras categorias mencionadas.

Ainda, em tese seria possível que a política pública inerente a um direito fosse satisfeita mesmo e apesar da caracterização de abuso no âmbito interno do direito, i.e. que o fim mediato do direito seja satisfeito apesar do direito garantido ter sido empregado voltado à realização de um fim diverso daquele determinado pelo legislador.

Apesar de importante sob uma perspectiva analítica e até mesmo prática, é importante destacar que a cumulação ou não cumulação de categorias em nada afeta a caraterização do abuso. Em outras palavras, basta a conduta abusiva, seja ela “externa”, “linear” ou “interna”, para que o abuso esteja caracterizado.

Resta aqui lançada uma proposta de estrutura para a análise e determinação da ocorrência de abuso de direito que, possivelmente, especialmente se temos em mente a advertência da juíza Wardlaw, no sentido que o abuso é inerente ao direito garantido, mereça ser melhor desenvolvida e discutida.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Würtenberger Rechtsanwälte, Munique, Alemanha.


ISSN 2509-5692

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