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Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no processo C215/14, Société des Produits Nestlé S.A. contra Cadbury UK Ltd, de 16 de setembro de 2015

por Karin Grau-Kuntz

O caso

A lide girou em torno de um pedido de registro de marca no Reino Unido, datado de 8 de julho de 2010, procedido pela empresa Nestlé e referente a um sinal tridimensional representando a forma de uma bolacha tipo wafer de chocolate com quatro “dedos”.

O pedido foi procedido para a classe 30, Classificação de Nice, especificamente para “Chocolate; guloseimas de chocolate; produtos achocolatados; guloseimas; preparações à base de chocolate; produtos de padaria; produtos de pastelaria; bolachas; bolachas com cobertura de chocolate; bolachas tipo wafer com cobertura de chocolate; bolos; biscoitos; bolachas tipo wafer”.

O sinal tridimensional em questão reporta a um produto inicialmente comercializado no Reino Unido em 1935 pela empresa Rowntree & Co Ltd, sob o nome “Rowntree’s Chocolate Crisp”. Em 1937, o nome do produto foi alterado para “Kit Kat Chocolate Crisp” tendo, posteriormente, sido encurtado para “Kit Kat”. Em 1988, a produtora, que neste meio tempo alterara seu nome para Rowntree plc, foi adquirida pela empresa Nestlé.

No que toca a forma do produto esta, desde 1935, sofreu apenas pequenas alterações em relação as suas dimensões. Os termos “Kit Kat”, bem como segmentos da parte oval que fazem parte do logotipo impresso na embalagem do produto e apresentada nas cores vermelho e branco, aparecem gravados em cada uma das quatro barras do produto.

O sinal tridimensional oferecido a registro difere, assim, da forma do produto da empresa Nestlé apenas pelo fato de nele não despontarem gravados os termos “Kit Kat” e os segmentos da parte oval do logotipo.

O pedido de registro do sinal tridimensional foi a princípio aceito pelo United Kingdom Intellectual Property Office e publicado para efeitos de oposição posto, de acordo com o instituto citado, apesar de faltar carácter distintivo inerente ao sinal, o requerente do pedido de registo ter demonstrado ter o sinal adquirido caráter distintivo pelo uso.

Em 28 de janeiro de 2011 a empresa Cadbury ofereceu oposição ao pedido de registro, arguindo falta de carácter distintivo e proibição de registro de um sinal constituído exclusivamente por uma forma imposta pela própria natureza do produto ou por uma forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico.

Neste ponto é importante destacar a legislação europeia pertinente, especificamente as partes relevantes do artigo 3° da Diretiva 2008/95:

Artigo 3.o
Motivos de recusa ou de nulidade
1. Será recusado o registo ou ficarão sujeitos a declaração de nulidade, uma vez efectuados, os registos relativos:
(…)
b) A marcas desprovidas de carácter distintivo;
(…)
e) A sinais constituídos exclusivamente:
i) pela forma imposta pela própria natureza do produto, ou
ii) pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico, ou
iii) pela forma que confira um valor substancial ao produto;
(…)
3. Não será recusado o registo de uma marca ou este não será declarado nulo nos termos das alíneas b), c) ou d) do n.o 1 se, antes da data do pedido de registo e após o uso que dele foi feito, a marca adquiriu um carácter distintivo. Os Estados-Membros podem prever, por outro lado, que o disposto no primeiro período se aplicará também no caso em que o carácter distintivo tiver sido adquirido após o pedido de registo ou o registo.

Posteriormente, por decisão do 20 de junho de 2013, o instrutor do processo do United Kingdom Intellectual Property Office considerou o sinal em questão como desprovido de caráter distintivo intrínseco entendendo, ainda, que este também não teria adquirido o referido caráter pelo uso.

Analisando o sinal oferecido a registro, o instrutor do processo assim determinou as seguintes características essenciais:

i) A forma de “barra” retangular;

ii) A presença, posição e profundidade de sulcos de quebra dispostos ao longo das barras, que efetivamente dividem a barra em “dedos” destacáveis;

iii) O número de tais sulcos, os quais em conjunto com a largura da barra de determinam o número de “dedos”.

O instrutor do processo notou, então, que a primeira característica reporta a uma forma que resulta da própria natureza do produto – chocolate em barra – e que, por conseguinte, o sinal não poderia ser objeto de registo, com exceção, todavia, do registro para “bolos” e “produtos de pastelaria”, em relação aos quais a forma retangular diverge significativamente das normas do setor.

No que toca as duas características restantes, o instrutor as considerou como necessárias para a obtenção de um resultado técnico – os sulcos são necessários para viabilizar a divisão da barra de chocolate em pedaços (“dedos”), indeferindo assim o pedido de registo também em consideração a este aspecto.

A Nestlé, inconformada, interpôs em 18 de julho de 2013 recurso perante a High Court of Justice (England and Wales), alegando que o sinal em questão não teria adquirido um caráter distintivo pelo seu uso antes do registro e o entendimento de que o sinal representaria uma forma imposta pela própria natureza do produto ou uma forma necessária à obtenção de um resultado técnico.

Concomitantemente, a empresa Cadbury impugnou a decisão mencionada de 20 de junho de 2013 no que tocou a parte referente aos bolos e aos produtos de pastelaria.

A High Court of Justice, a seu turno, constatou, de plano, que o instrutor do processo não deveria ter procedido a uma distinção entre, por um lado, os bolos e os produtos de pastelaria e, por outro, todos os outros produtos da classe 30 da Classificação de Nice, no que respeita tanto à prova do caráter distintivo da marca em causa como à aplicabilidade do artigo 3.°, n.° 1, alínea e), i) e ii), da Diretiva 2008/95.

Em seguida e relativamente à questão de saber se o sinal teria adquirido caráter distintivo pelo seu uso antes do pedido de registro, a Corte manifestou dúvidas se seria suficiente para este fim a simples demonstração de que uma percentagem significativa do público relevante é capaz de reconhecer o sinal, simplesmente associando-o aos produtos do requerente do pedido de registro ou, ao contrário, se seria necessário demonstrar que uma percentagem significativa do público relevante é capaz de confiar no sinal como indicação de origem do produto.

Esta questão reporta a dois tipos diferentes de teste de reconhecimento do sinal. O primeiro, mais maleável, apenas exige que o público relevante vincule o sinal oferecido a registro com o chocolate “Kit Kat” da Nestlé. O segundo, mais rígido, exige a comprovação de que o público relevante é capaz de ver no sinal, em si considerado, uma indicação de origem do produto.

Na prática o que se tem em conta aqui é o fato do sinal tridimensional objeto do pedido de registro vir sendo, como acima mencionado, oferecido ao público com o nome Kit Kat e parte do logotipo gravados nos “dedos” do chocolate. Frente a esta situação seria justificável questionar se o público relevante reconhece e vincula o sinal oferecido a registro à marca “Kit Kat” e consequentemente à empresa Nestlé porque tem em mente a forma do sinal em conjugação com os termos e parte do logotipo gravados no chocolate, ou porque tem em mente apenas a forma da barra.

Ainda, a Corte apresentou dúvidas se poderia ser aceita a interpretação do artigo 3.°, n.° 1, alínea e), ii), da Diretiva proposta pela Nestlé, no sentido que o registo de um sinal só poderia ser recusado quando todas as suas características essenciais fossem características de forma necessárias à obtenção de um resultado técnico.

No mesmo sentido a Corte hesitou em adotar a posição defendida pela Nestlé, segundo a qual a Diretiva sobre as marcas se aplica quando a forma é necessária para obter um resultado técnico no que se refere à função dos produtos, mas não quando a forma é simplesmente necessária para obter um resultado técnico relativo ao modo como os produtos são fabricados.

Restando estas três questões abertas, a High Court suspendeu o processo e ofereceu ao Tribunal de Justiça Europeu as seguintes questões prejudiciais:

1) Para provar que uma marca adquiriu caráter distintivo após o uso que dela foi feito na aceção do artigo 3.°, n.° 3, da Diretiva [2008/95], é suficiente que o requerente do pedido de registo demonstre que, na data relevante, uma percentagem significativa do grupo de pessoas em causa reconhece a marca e a associa aos produtos do requerente no sentido de que, se essas pessoas fossem questionadas sobre a identidade de quem comercializa os produtos que ostentam a marca, essas pessoas identificariam o requerente? Ou é suficiente que o requerente do pedido de registo demonstre que uma percentagem significativa do grupo de pessoas em causa considerava que a marca (por oposição a quaisquer outras marcas eventualmente também presentes) indicava a origem dos produtos?

2) Quando uma forma é constituída por três características essenciais, uma das quais é imposta pela própria natureza dos produtos e duas são necessárias à obtenção de um resultado técnico, o artigo 3.°, n.° 1, alínea e), i) e/ou ii), da Diretiva [2008/95] opõe‑se ao registo dessa forma como marca?

3) Deve o artigo 3.°, n.° 1, alínea e), ii), da Diretiva [2008/95] ser interpretado no sentido de que se opõe ao registo de formas que são necessárias à obtenção de um resultado técnico no que respeita ao modo como os produtos são fabricados e não no que respeita ao modo como os produtos funcionam?>/em>

Decisão do Tribunal de Justiça

Seguindo jurisprudência anterior o Tribunal de Justiça frisou que, constituindo o artigo 3.°, n.° 1, alínea e), da Diretiva 2008/95, acima citado, um obstáculo preliminar para o registro como marca de um sinal constituído exclusivamente pela forma de um produto, isso implica que se um único dos três critérios mencionados na disposição estiver preenchido, tal sinal não poderá ser registrado como marca.

Isto posto e por consequência, um sinal cujo registro é recusado ao abrigo da disposição mencionada nunca poderá adquirir um caráter distintivo em razão de uso e, assim, o Tribunal decidiu iniciar sua análise pela verificação dos obstáculos relativos ao registro como marca de um sinal constituído pela forma do produto para, então, depois de respondida esta questão, analisar se o sinal em causa pôde, eventualmente, adquirir um caráter distintivo que viesse a justificar o registro.

Invocando a ratio do Artigo 3.°, n.° 1, alínea e), da Diretiva 2008/95, o Tribunal recordou a importância do dispositivo, que tem por fim impedir que o direito exclusivo e permanente atribuído por uma marca possa servir para perpetuar, sem limitação temporal, outros direitos que o legislador da União pretendeu submeter a prazos de caducidade.

No que se refere à questão de saber se as razões de recusa alinhadas no dispositivo podem ser objeto de uma aplicação concomitante, lembrou jurisprudência anterior , onde já havia sido precisado decorrer claramente de sua redação que os três motivos de recusa de registo têm natureza autônoma e são aplicados de forma independente.

Assim, estando plenamente preenchido um único dos critérios mencionados, o sinal constituído exclusivamente pela forma do produto não poderá ser registado como marca, sendo a aplicação cumulativa dos critérios possível, desde que um dos critérios se aplique plenamente à forma em questão.

No que tocou a terceira questão prejudicial, que girou em torno de saber se artigo 3.°, n.° 1, alínea e), da Diretiva 2008/95 deve ser interpretada no sentido de que diz unicamente respeito ao modo como o produto em causa funciona ou no sentido de que também se aplica ao modo como o produto é fabricado, o Tribunal notou que sua redação se refere expressamente à forma do produto que é necessária para obter um “resultado técnico”, sem evocar o processo de fabricação desse produto. Assim, prosseguiu, decorre de uma interpretação literal desta disposição que o motivo de recusa está limitado ao modo de funcionamento do produto. Esta interpretação – afirmou – é confirmada pelo objetivo prosseguido pelo Artigo em questão, que consiste em evitar que seja conferido um monopólio sobre soluções técnicas. Com efeito, do ponto de vista do consumidor, as funcionalidades do produto são determinantes, sendo irrelevantes as modalidades de fabricação do mesmo.

O Tribunal entendeu, então, que “o artigo 3.°, n.° 1, alínea e), ii), da Diretiva 2008/95, que permite recusar o registo de sinais constituídos exclusivamente pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico, deve ser interpretado no sentido de que visa o modo de funcionamento do produto em causa e não se aplica ao modo de fabricação.”

Tratando por fim da questão da aquisição do caráter distintivo, o Tribunal decidiu que a disposição legal pertinente deve ser entendida no sentido de que o requerente do pedido de registo em questão deve fazer prova de que o grupo de pessoas em causa tem uma perceção efetiva de que o produto ou o serviço designado apenas por essa marca, por oposição a qualquer outra marca que possa também estar presente, provém de uma empresa determinada.


Comentário

Respondidas as questões prejudiciais, caberá agora à justiça britânica, com base nas respostas fornecidas pelo Tribunal Europeu, decidir em concreto o caso em comento.

É muito provável que a corte nacional competente avalie, a princípio, se o sinal tridimensional oferecido a registro é ou não constituído pela forma imposta pela própria natureza do produto ou pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico.

Se a resposta for positiva, então a questão de natureza probatória vinculada à hipótese de o sinal ter ou não ter adquirido carácter distintivo restará obsoleta.

Se, porém, a resposta for negativa, i.e. decidindo não haver obstáculo preliminar ao registro, então caberá à Corte determinar se o sinal é intrinsecamente dotado de carácter distintivo e, em caso negativo, se o sinal adquiriu caráter distintivo pelo uso antes do pedido de registro.

Nesta última hipótese, e assim entendida a decisão do Tribunal de Justiça Europeu , será necessário comprovar que a barra de chocolate composta por quatro “dedos” destacáveis reporta à empresa Nestlé, sem que o consumidor necessite, para fins desta vinculação do produto à sua origem comercial, lançar mão da marca “Kit Kat” ou da lembrança da embalagem do produto.

Em outras palavras, o Tribunal decidiu pela opção de aplicação de teste mais rígido em detrimento à possibilidade de aplicação do teste mais flexível.

A exigência de realização de um teste mais rígido nos termos referidos reporta à seguinte particularidade: os Tribunais do Reino Unido vêm exigindo, para além da vinculação pelo público relevante do sinal a uma marca e, por consequência, a um produtor, a prova de que o consumidor médio ainda “confia” no sinal como um indicativo de origem comercial. O requisito da “confiança”, por sua vez, é estranho, por exemplo, ao direito alemão.

Na prática isto significa que o sistema probatório do grau de caráter distintivo adquirido pelo uso diverge nos Estados-Membros; as decisões do Tribunal de Justiça Europeu são, porém, supranacionais.

Nessa linha é interessante notar que em seu acórdão o Tribunal de Justiça Europeu em momento algum empregou o termo “confiança”. Pelo contrário, rejeitou o teste mais flexível exigindo que a apuração da aquisição de carácter distintivo pelo uso seja feita em um contexto onde é apresentado ao consumidor não apenas a representação do sinal tridimensional objeto de pedido de registro, mais antes a representação do sinal em oposição a outras marcas.

Neste ponto o acórdão pode ser entendido como uma tentativa de conciliação frente as exigências dos sistemas jurídicos em questão, ou como uma derrota ou vitória da Nestlé. Aqui a razão das expectativas que envolveram e que envolvem o pedido de registro do sinal da barra de chocolate.

Passando à questão da determinação da autonomia e a possibilidade de cumulação dos critérios definidos no Art. 3, n.° 1, alínea e), da Diretiva 2008/95/CE, é interessante reproduzir, mesmo que de forma resumida, os argumentos apresentados pelas partes e que, por fim, deram ensejo a formulação da segunda questão prejudicial oferecida ao Tribunal de Justiça Europeu.

Recordo o resultado da análise proposta pelo instrutor do processo do United Kingdom Intellectual Property Office, onde o sinal oferecido a registro foi caraterizado pela presença de três características essenciais, quais sejam a forma retangular vinculada à própria natureza do produto (barras de chocolate são retangulares), e outras duas necessárias para alcançar um efeito técnico, i.e. possibilitar repartir o chocolate em pedaços iguais (“dedos”).

A empresa Nestlé, lançando mão de jurisprudência anterior do Tribunal Europeu, nomeadamente as relativas aos casos Phillips v. Remington e Lego, argumentou que só poderia ser negado o registro do sinal em questão se todas as características essências do sinal fossem impostas pela própria natureza do produto ou se todas elas fossem necessárias para alcançar um resultado técnico. Tendo o instrutor do processo encontrado características de natureza distintas, o obstáculo preliminar não teria sido caracterizado e o pedido de registro não poderia ser recusado à luz do dispositivo legal em causa.

A Cardbury, por sua vez, contra-argumentou que seria bizarro ter de aceitar o pedido de registro de um sinal só porque uma das características reporta a um tipo, enquanto as outras duas reportam a um outro tipo de proibição de registro.

Tendo em conta jurisprudência proferida em 2014 no caso das cadeiras Tripp-Trapp, o Tribunal não teve dificuldade para resolver a questão, adotando o entendimento proferido anteriormente, no sentido de autonomia dos critérios e possível aplicação cumulativa.

Tendo isto em vista, é possível especular: o pedido de registro do sinal tridimensional da Nestlé será rejeitado pela Corte nacional em razão de obstáculo preliminar e a questão de natureza probatória vinculada a aquisição de carater distintivo não será tratada, permanecendo aberta.

Mas mesmo que esta previsão venha a ser acertada, nota-se que a empresa Nestlé é conhecida pela persistência em batalhar por suas pretensões. A questão do registro do sinal tridimensional da Nestlé certamente voltará em breve a ser tema de comentário.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU),


Foto: Karin Grau Kuntz


ISSN 2509-5692

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