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Reino Unido – High Court of Justice, Caso Nr. HC11C02291, Bayerische Motoren Werke Aktiengesellschaft v. Round and Metal Limited – 27 de Julho de 2012

por Karin Grau-Kuntz

Introdução

Tendo tomado conhecimento de um recente julgado do Landgericht de Düsseldorf (14c O 304/12 U) sobre a questão das peças de reposição de automóveis protegidas por registro de desenho industrial, e aproveitando a ocasião para verificar o material já colectado sobre a matéria, voltei a ter em mãos um acórdão proferido pela High Court of Justice do Reino Unido, datado de meados de 2012. Se no âmbito legislativo a discussão referente à “questão das peças de reposição” está estagnada, o acórdão mencionado, escolhido para ser explorado na Seção de Jurisprudência Comentada deste periódico, demonstrará que os Tribunais dos países membros, pelo contrário, a tem bastante presente.

O caso

A empresa Bayerische Motoren Werke Aktiengesellschaft (BMW) procedeu registros comunitários de desenhos industriais de modelos de calotas para os veículos por ela produzidos. A empresa Round and Metal (R & M), por sua vez, importava para o território do Reino Unido calotas com a mesma aparência dos modelos registrados, oferecendo-as então ao mercado, o que levou a BMW a ir a juízo acusando a R&M de violação de seus registros de desenho industrial comunitários (o pleito ainda tocou direito de marca, um aspecto que, por questão de espaço, não será objeto do presente comentário). A R&M, por sua vez, defendeu-se invocando o artigo 110 (1) do Regulamento (CE) N. 6/2002 do Conselho de 12 de Dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários, uma disposição transitória que assim versa:

Até à data de entrada em vigor das alterações ao presente regulamento com base numa proposta da Comissão sobre esta matéria, não existe protecção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados, na acepção do Nº 1 do artigo 19º, para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original.

A High Court of Justice identificou na correta interpretação do Art. 110(1) a essência da querela. Partindo dessa proposição identificou, por sua vez, quatro questões derivadas aqui elencadas:

– Primeira questão: do ônus da prova

Pergunta-se: nos termos do Art. 110(1) as características relevantes dos desenhos não seriam protegidas ou o dispositivo, sem tocar a proteção garantida aos desenhos, estaria garantindo um mero meio de defesa?

Em outras palavras, o dispositivo em questão estaria proibindo o registro de desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados para possibilitar a reparação desses produtos complexos, no sentido de lhes restituir a sua aparência original?

Em caso afirmativo, o artigo expressaria uma exceção à proteção como desenho industrial e caberia então à BMW o ônus de demonstrar que os atos da R&M estariam ferindo um direito seu. Na contramão, devendo ser o dispositivo compreendido como um mero meio de defesa, então caberia a R&M demonstrar que este meio de defesa seria aplicável no caso em tela.

– Segunda questão: da dependência

O art. 110 (1) só é aplicado quando o desenho da parte componente é dependente da aparência do produto complexo?

– Terceira questão: dos fins da parte componente

O que significa “utilizados … para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original”?

– Quarta questão (da aparência original)

Qual o significado do trecho “no sentido de lhes restituir a sua aparência original”? Estaria o trecho apenas vinculado à aparência do carro como originariamente produzido?

Respostas da Court of Justice, na pena do Juiz Arnold

– Resposta referente à primeira questão (do ônus da prova)

O juiz Arnold, enfrentando a dificuldade de interpretação da letra do Art. 110(1) que, em suas palavras, não oferece clareza, acolheu a forma de leitura proposta pela BMW, no sentido de que o dispositivo deve ser compreendido como um mero meio de defesa, não proibindo o registro de desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados para possibilitar a reparação desses produtos complexos, para lhes restituir a sua aparência original.

Esse entendimento esteve calcado primeiramente no fato de que nenhuma das causas de nulidade de registro elencadas no Art. 25 do Regulamento (CE) N. 6/2002 corresponderem ao Art. 110(1).

Ainda, após proceder a uma análise detalhada do histórico legislativao do dispositivo em questão, que foi marcado por um processo político complexo, entendeu que o artigo apenas seria aplicável quando a parte componente fosse “usada … para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original”, operando nesse sentido uma exceção ao direito conferido pelo registro frente a circunstâncias particulares.

– Resposta referente à segunda questão (da dependência)

Esta, nas palavras do juiz Arnold, a resposta mais importante para o deslinde da querela.

Ela reporta ao Recital 13, especificamente no que toca o trecho abaixo grifado, que se consta do Recital, não aparece na redação do Art. 101(1):

A Directiva 98/71/CE não permite alcançar uma aproximação integral das legislações dos Estados-Membros relativas à utilização de desenhos ou modelos protegidos com o objectivo de possibilitar a reparação de um produto complexo a fim de lhe restituir a sua aparência original, quando o desenho ou modelo é aplicado ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo, cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido. No âmbito do procedimento de conciliação da referida directiva, a Comissão assumiu o compromisso de rever as consequências das disposições dela constantes, três anos após a data limite da sua transposição, especialmente no tocante aos sectores industriais mais afectados. Nestas circunstâncias, parece apropriado não conferir protecção a título de desenho ou modelo comunitário a todo o desenho ou modelo que esteja aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo cuja aparência condicione o desenho ou modelo e que seja utilizado para possibilitar a reparação de um produto complexo no sentido de lhe restituir a sua aparência original, enquanto o Conselho não tiver aprovado a sua política nesta matéria, com base numa proposta da Comissão.

A BMW defendeu que o Art 110(1) deveria ser compreendido tendo-se em conta o elemento condicional do Recital – “cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido”, enquanto a R&M defendeu entendimento oposto, arguindo que o trecho teria sido incluído no Recital por um acidente, não devendo assim ser levado em conta – muito pelo contrário, o destaque deveria estar na omissão do trecho no texto do Art. 110(1).

O juiz Arnold entendeu que o ponto de partida da interpretação do Art. 110(1) deve ser a própria Resolução. Ainda, o processo interpretativo deve ser feito em atenção às regras desenvolvidas pela Corte de Justiça Europeia, sendo que a regra básica, reiterada em várias decisões, foi determinada no Caso C-306/05, Sociedad General de Autores y Editores de Espana v. Rafael Hoteles SA. Nesse sentido, para a interpretação da legislação comunitária é necessário considerar não apenas a letra da Lei, mas também o seu contexto e, ainda, os objetivos por ela perseguidos.

É de amplo conhecimento, como lembra o juiz Arnold, que a aplicação dessa regra básica pelas Cortes envolve rotineiramente os Recitais, as provisões operativas e, frequentemente, o material pré-legislativo, como os memorandos explanatórios que acompanham as propostas legislativas da Comissão Europeia. Por conseguinte a leitura correta do Art. 110(1) pede a consideração da letra do Recital 13, devendo ser interpretado de forma restritiva.

Em outras palavras, a interpretação correta do meio de defesa seria “não existe proteção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos, cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido, e que sejam utilizados para possibilitar a reparação desses produtos complexos, no sentido de lhes restituir a sua aparência original.”

Para suportar esta leitura o juiz Arnold citou ainda decisões espanholas e italianas no mesmo sentido, além de mais uma vez lançar mão das informações colhidas durante a análise do processo legislativo, destacando que, apesar das diversas alterações das propostas, um aspecto consistente durante toda a discussão foi o fato de estar-se tratando de componentes de produtos complexos, cuja aparência condiciona o desenho ou modelo protegido.

Aplicando então as conclusões ao caso em julgamento, a decisão encontrada foi no sentido de que o desenho das calotas não está condicionado à aparência do produto complexo. Isto estaria bem evidenciado no fato da substituição de calotas com um desenho determinado por outras com outro desenho constituir uma opção perfeitamente realista para o consumidor. Nesses sentido a exceção do Art. 110(1) não abarca as calotas produzidas pela R&M.

– Resposta referente à terceira questão (dos fins da parte componente)

Por trás da terceira questão encontramos a seguinte discussão iniciada pela BMW: a parte componente em questão – a calota – é utilizada na prática normalmente para fins de reparação do produto complexo, isto é, como reposição de uma peça original danificada ou é empregada para outros fins como, por exemplo, para incrementar a aparência do produto?

A esse respeito a empresa R&M defendeu que o correto seria considerar as propriedades intrínsecas da parte componente, ou seja, bastaria que ela sirva para ser utilizada como peça de reposição. Isto posto – e agora resta evidente as razões que levaram a BMW a iniciar essa discussão em juízo, o Artigo 110 (1) seria aplicado mesmo se 75% das calotas oferecidas pela R&M estivessem sendo usadas para incrementar a aparência do veículo, enquanto apenas 25% estariam sendo empregadas como peças de reposição.

O juiz Arnold entendeu como decisiva a palavra utilizar (utilizados) na redação do Art. 110(1) “… não existe protecção a título de desenho ou modelo comunitário para os desenhos ou modelos que constituam componentes de produtos complexos e que sejam utilizados (…) para possibilitar a reparação desses produtos complexos no sentido de lhes restituir a sua aparência original.” Então destacou que, apesar do dispositivo apenas empregar a palavra utilizar (utilizados), o que poderia sugerir que o legislador só teria tido em conta a ação do mecânico, na verdade é necessário considerar também a posição do fornecedor da peça de reposição e, ainda, a posição do consumidor final, isto é, o dono do veículo. Os critérios de análise aqui devem ser necessariamente objetivos, não dependendo da intenção subjetiva do fornecedor de peças, do mecâncico ou do consumidor final.

Para Arnold, então, a letra do Art. 110(1) indica no sentido de que se a parte componente é normalmente utilizada, ela necessariamente cumpre com um fim (utilizada como, ou utilizada para). Consequentemente não basta apenas a determinação das qualidades intrínsecas da parte componente – ou seja, não bast,a para a correta interpretação do dispositivo, apenas verificar se ela serve como peça de reposição, mas antes é necessário indagar o fim a que se presta, isto é, se ela geralmente é utilizada como peça de reposição de outra danificada.

Calotas, notou o juiz, não são geralmente adquiridas como peça de reposição de outra danificada, mas antes para incrementar o produto complexo, isto é o automóvel.

Essa conclusão foi suportada pela seguinte evidência: as faturas da R&M demonstraram que suas calotas eram vendidas em grupos de quatro (Ou, ainda e entre outras evidencias, a R&M oferecia calotas com o logo da BMW, o que não seria necessário se o fim fosse apenas trocar a calota danificada). Assim decidiu também no que tange a terceira questão a interpretação do dispositivo deve ser feita em suporte aos interesses da empresa Autora BMW.

– Resposta referente à quarta questão (da aparência original)

Se resta claro que o Art. 110(1) só é aplicado se a parte componente for utilizada para restaurar a aparência original do produto complexo, restou ainda necessário questionar se a expressão “original” estaria limitada à aparência do produto quando deixou a fábrica, ou se também poderia ser qualificada como original a aparência que o produto possa ter adquirido pela intervenção de proprietários intermediários.
O juiz Arnold entendeu que a expressão original reporta à aparência do produto complexo quando deixa a fábrica, posto ser evidente o objetivo do Art. 110(1), voltado a prevenir o efeito lock-in no mercado de peças de reposição – mercado secundário – em relação à primeira venda do carro, isto é, em consideração ao mercado de veículos – mercado primário. Esta situação não se coloca quando a aparência do veículo foi incrementada por um proprietário intermediário.

A decisão final foi no sentido de que as calotas não estariam abarcadas pela exceção do Art. 110(1) e que a venda das réplicas pela R&M caracteriza violação do registro de desenho industrial da Autora BMW.


Comentário

Por trás das consequências práticas vinculadas à determinação do ônus da prova, a primeira questão trouxe a lume um aspecto importante da discussão que envolveu (e que ainda envolve) o problema das peças de reposição de automóveis no âmbito europeu (veja aqui e aqui). Este aspecto merece destaque especial.

De fato, como bem notou o juiz Arnold, o processo legislativo referente ao Art. 110(1) não esteve centrado em uma possível interferência na substância do direito – i.e. na negativa de proteção por registro para os desenhos de peças de reposição voltadas a restaurar a aparência original do produto complexo, mas antes no estabelecimento de uma exceção no que toca o exercício do direito decorrente do registro de desenho industrial. Esta exceção ao exercício do direito, por sua vez, não é aleatória, mas tem em conta uma determinada circunstância especial, qual seja a de evitar situações de mercado caracterizadas pela ausência de concorrência.

As consequências práticas da adoção de uma ou outra opção são evidentes. Uma interferência na substância do direito – i.e. a exclusão de possibilidade de proteção de desenhos de peças de reposição voltadas a restaurar a aparência original do produto complexo, porque muito mais abrangente, permitiria uma interpretação mais extensiva do que aquela que é possível frente a uma interferência limitada ao exercício do direito e, ainda, condicionada a um evento de mercado determinado.

A relevância da situação de mercado, que opera como um elemento condicional da exceção disposta no Art. 110(1), ficou bem evidente na resposta oferecida à quarta questão.

Em detalhes, quando o componente é protegido por registro de desenho industrial, o consumidor só conta com uma única possibilidade para restaurar a aparência original (de fábrica – a aparência de fábrica do veículo é determinante, uma vez que o consumidor geralmente a tem como um elemento de orientação no processo de escolha do veículo) do veículo, outra, porém, é a situação em relação à aparência do veículo que, antes de ser adquirido pelo consumidor, já havia sido incrementada por um intermediário. Frente a esta segunda hipótese o consumidor terá duas opções, quais sejam a) repor a peça de forma que a aparência do veículo corresponda àquela que tinha quando saiu da fábrica ou b) repor a peça de forma a manter a aparência incrementada do veículo.

Onde há opções de componentes a proteção garantida pelo registro de um desenho industrial não traduz um monopólio relativo ao produto em si considerado, o consumidor não está encarcerado no mercado e, assim, nada obsta ao exercício do direito oriundo do registro.

A segunda questão versou sobre uma preocupação de técnica interpretativa. Sem aqui pretender negar importância a ela, prefiro concentrar-me no fato do juiz ter entendido que as calotas não são componentes condicionantes da aparência original do produto complexo. Ainda, aproveito para tecer meus comentários no que toca à resposta oferecida à terceira questão.

Se o exercício da propriedade intelectual deve necessariamente ocorrer em conformidade com as regras que garantem o funcionamento dos mercados, por outro lado toda e qualquer interferência no exercício de um direito garantido deve ser tratada com a seriedade devida. Se compreendo como legítima a intervenção no exercício do direito oriundo de um registro de desenho industrial nas condições específicas do caso em comento, por outro também só tenho como legítima tal intervenção enquanto necessária para evitar uma situação de mercado indesejada.

Insistindo, ambos os extremos – um mercado sem a possibilidade de concorrência ou uma intervenção no exercício de um direito garantido para além dos limites das razões que a justificam – são altamente indesejáveis.

Apesar do juiz Arnold não ter explorado este aspecto de grande relevância, o que muito lamento, ele logrou estabelecer, com sua análise pragmática, calcada nos hábitos dos consumidores, os limites da intervenção no exercício do direito: se a substituição de calotas com um desenho determinado por outras constitui uma opção perfeitamente realista ao consumidor (portanto havendo alternativas no mercado) e, ainda, se as calotas são geralmente adquiridas em conjunto (i.e. para incrementar a aparência do automóvel), então não é legítima a interferência no exercício do direito garantido pelo registro de desenho industrial.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Würtenberger Rechtsanwälte, Munique, Alemanha.


Foto: Karin Grau Kuntz – Direitos reservados


ISSN 2509-5692

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