por Karin Grau-Kuntz
Tribunal de Justiça da União Europeia – C‑434/15 – Opinião do advogado-geral Maciej Szpunar no caso UberPop
Sob a denominação “UberPop” a empresa Uber oferece (ou, em parte, oferecia) por meio de aplicativo móvel no território da União Europeia serviços de transporte de passageiros realizados por motoristas não profissionais em seus próprios veículos. Para tanto e valendo-se de conexão com satélite, o aplicativo móvel verifica a localização do usuário, reconhece os motoristas disponíveis nas redondezas, os informa sobre a possibilidade de prestarem o serviço de transporte e sobre o destino da corrida. No momento em que o motorista aceita realizar o serviço o aplicativo indica ao usuário seus dados e oferece, ainda, uma estimativa do preço da corrida até o destino anteriormente indicado.
O pagamento da corrida ocorre por dedução de cartão de crédito do usuário ou por sistema de pagamento online. Os dados necessários para o débito do preço da corrida são obrigatoriamente fornecidos no momento do registro para uso do aplicativo. O cálculo do preço é realizado com base na distância e na duração do trajeto variando, porém, segundo o volume de demanda em um momento concreto. Do preço calculado para a corrida o operador do aplicativo móvel deduz automaticamente um percentual correspondente à sua comissão, que varia entre 20% a 25%, repassando o valor restante ao motorista.
O aplicativo ainda permite a avaliação dos motoristas. Uma baixa pontuação na avaliação do serviço pode implicar na exclusão da plataforma.
Na mesma medida em que a empresa Uber é conhecida mundialmente pela prestação do serviço descrito, ela está em evidência em razão das controvérsias jurídicas que seu modelo de negócio vem gerando ao redor do globo (veja aqui).
A polêmica em torno da empresa Uber e especificamente em torno do “UberPop” está vinculada ao fato do modelo de negócio por ela adotado ser levado a cabo por não profissionais em um mercado regulamentado, qual seja o de transporte de passageiros.
Em miúdos, enquanto o serviço profissional de transporte de passageiros está vinculado a licenciamento prévio pelo Poder Público e ao cumprimento de uma série exigências legais, a prestação do mesmo serviço por motoristas não profissionais é praticada independente de licenciamento e sem o cumprimento das exigências legais.
As implicações práticas desta situação díspar serviram de estopim a uma série de ações propostas frente aos Tribunais dos diversos países onde a empresa Uber iniciou suas atividades. Na Alemanha, por exemplo, o OLG de Frankfurt proibiu a empresa de oferecer os serviços do UberPop por violarem as normas nacionais que regulam o transporte de passageiros (veja aqui). O mesmo ocorreu na Espanha, onde uma associação de taxistas de Barcelona requereu em juízo a condenação da empresa Uber por prática de concorrência desleal.
O caso em comento, que tem em foco a Opinião proferida pelo Advogado-Geral Maciej Szpunar (veja aqui), teve sua origem na ação proposta pela mencionada associação de taxista de Barcelona. O Tribunal espanhol competente, diante das circunstâncias do caso, teve por acertado interromper o julgamento e invocar o Tribunal Europeu requerendo, com a submissão de quatro questões prejudicias, que situe os serviços prestados pela empresa Uber frente ao quadro legal do direito europeu.
Para bem compreender a questão proposta pela Justiça espanhola ao Tribunal Europeu há de se considerar que a) a liberdade de prestação de serviços é um dos alicerces da União Europeia e b) que a competência de regulamentação de alguns setores econômicos, como o de transporte de passageiros, persiste, apesar da máxima unionista da liberdade de prestação de serviços, no âmbito dos Estados-Membros. Isto posto é possível expressar o problema submetido à apreciação do Tribunal Europeu da seguinte maneira: os serviços oferecidos pela empresa Uber seriam de intermediação de serviços oferecidos por terceiros, como ocorre com as plataformas que intermediam hotéis ou passagens de avião, ou seriam serviços de transporte urbano?
Na primeira hipótese caberia a aplicação do direito europeu, especificamente da regra de liberdade de prestação de serviços, de modo que o serviço de transporte realizados por particulares não poderia ser proibido.
Na segunda hipótese, tocando serviços de transporte de passageiros, tratar-se-ia de um campo de competência mista do direito europeu e do direito nacional, prevalecendo a aplicação do direito nacional, mais especificamente da legislação interna dos Estados-membros que regula o mercado em questão.
O Advogado-Geral iniciou a análise do caso propondo averiguar o tipo de serviço oferecido pela empresa Uber: trata-se de uma empresa de transporte, de táxi ou, a exemplo das plataformas que intermediam hotéis, trata-se de plataforma eletrônica que permite localizar, reservar e pagar por serviço de transporte prestado por terceiros?
A fim de responder esta questão concentrou-se nas etapas que caracterizam o serviço prestado pela empresa Uber. Verificou, então, que o serviço em questão envolve uma primeira etapa virtual e ainda uma segunda, que corresponde à prestação física do serviço de transporte. Defendeu, a seguir, ser determinante para a apuração do tipo de serviço prestado quando considerado em sua totalidade, verificar se as etapas envolvidas são a) independentes entre si ou se formam uma unidade inseparável e b) se independentes entre si, se a etapa virtual corresponde à parte principal do serviço prestado, como ocorre, por exemplo, no caso de venda online de uma mercadoria.
O Advogado-Geral notou, de plano, que no caso presente o exercício do serviço oferecido pelo motorista não profissional não ocorre de forma independente da existência da plataforma Uber, como é o caso, por exemplo, das plataformas que intermediam vagas em hotéis. Pelo contrário, a atividade de motorista exercida por esses particulares só existe enquanto vinculada à plataforma. Diante da constatação de que as etapas do serviço prestado pela empresa Uber formam assim uma unidade inseparável, entendeu que o serviço oferecido pela empresa é de transporte, e não de mera intermediação de serviços de terceiros.
Esta conclusão é confirmada por outros fatores.
Seguindo com a análise destacou que o aplicativo oferecido pela empresa Uber permite àquele que deseja exercer a atividade de transporte urbano conectar-se a plataforma e a realizar o serviço nas condições impostas pela empresa, condições que, a seu turno, estão vinculadas ao contrato de uso do aplicativo. Isto posto concluiu que o contrato de uso do aplicativo não se limita a dispor sobre as regras de acesso a plataforma mas, indo mais além, regula, também, a forma de comportamento dos motoristas.
O fato da empresa vincular a adesão à plataforma a um sistema de valoração dos serviços e ainda à possibilidade de penalizar o motorista com baixa pontuação com expulsão, implica na constatação de que a empresa exerce controle, mesmo que indireto, sobre a qualidade do serviço prestados pelos motoristas.
O Advogado-Geral destacou, por fim, que a empresa recompensa economicamente os motoristas que realizam um número determinado de corridas e que indica os lugares e horários em que podem contar com alta demanda e com tarifas vantajosas. Ademais, acrescentou, é ela quem determina o preço do serviço prestado, que é calculado em função da distância e da duração do trajeto tal como a aplicação registrou com ajuda do sistema de satélite. A continuação disto, um algoritmo ajusta o preço calculado pela relação distância/duração da corrida a outros fatores relevantes, aumentando-o, por exemplo, quando a demanda no momento de requerimento da corrida é maior.
Os argumentos listados, concluiu o Advogado-Geral, demonstram que a empresa Uber controla — mesmo que de maneira indireta — todos os aspectos pertinentes a um serviço de transporte de passageiros, quais sejam o preço, a acessibilidade a oferta de transporte, ao incitar os motoristas a exerceram sua atividade em momentos e lugares de maior procura por corridas e, ademais, o comportamento dos motoristas por meio do sistema de valoração. Isto indica no sentido de que a empresa oferece serviços de transporte e não de mera intermediação de serviços de terceiros. Ponto alto neste sentido é o fato dos serviços serem prestados em nome da própria empresa, o que não ocorre no caso de plataformas que simplesmente intermediam serviços de terceiros.
A Opinião do Advogado Geral foi contundente no sentido de não ser possível considerar o aplicativo em questão como um instrumento voltado a meramente intermediar serviços de motoristas dispostos a realizar, ocasionalmente, serviços de transporte. Ao contrário, o resultado da análise indicou que a empresa Uber atua como organizadora e operadora dos serviços de transporte de passageiros nas cidades onde atua. Aplicando os critérios de análise propostos, o serviço prestado eletronicamente — isto é o contato entre passageiro e motorista – não pode ser caracterizado, em consideração ao serviço de transporte, como independente ou como de caráter principal.
Apesar do Tribunal Europeu não estar vinculado à Opinião do Advogado-Geral, na falta de um argumento contrário sólido é possível apostar em uma decisão contra os interesses da empresa Uber. Nesta hipótese será interessante acompanhar o desfecho do caso no âmbito da Justiça espanhola, pois se o serviço que presta é de transporte de passageiros, então a empresa Uber estaria não só atuando no mercado em desrespeito as leis aplicáveis, mas também cometendo concorrência desleal. Uma decisão neste sentido poderá, ainda, afetar outros serviços oferecidos por aplicativos móveis, como por exemplo os da empresa Airbnb, que intermedia hospedagem oferecida por pessoas privadas.
Karin Grau-Kuntz, doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), Munique, Alemanha.
ISSN 2509-5692