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Proteção autoral para modelos de vestuário?

Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Cofemel/G-Star (C-683/17) de 12.09.2019

por Karin Grau-Kuntz

O caso

1. As empresas Cofemel (Portugal) e G‑Star (Países Baixos) são sociedades que operam no setor da criação, confeção e comercialização de vestuário.

A G-Star explora, desde a década de 1990, as marcas G‑STAR, G‑STAR RAW, G‑STAR DENIM RAW, GS‑RAW, G‑RAW e RAW. O vestuário criado, confecionado e comercializado sob estas marcas inclui, nomeadamente, um modelo de calça jeans denominado ARC, bem como modelos de blusão de moleton e de camiseta denominado ROWDY.

A Cofemel, a seu turno, também cria, confeciona e comercializa, sob a marca TIFFOSI, calças jeans, blusões de moleton e camisetas. (veja aqui)

Em 30 de agosto de 2013, a G‑Star instaurou em Portugal uma ação declarativa de condenação contra a Cofemel, pedindo que esta fosse condenada a cessar os atos de violação dos seus direitos de autor e de concorrência desleal, bem como a indenizá-la pelos prejuízos sofridos e, em caso de nova infração, a pagar‑lhe uma sanção pecuniária compulsória diária até que o ato violador tenha cessado. A Autora G‑Star alegou que alguns dos modelos de calças jeans, de blusões de moleton e camisetas produzidos pela Cofemel seriam idênticos aos seus modelos ARC e ROWDY. Entendeu, ainda, que estes modelos de vestuário constituíam criações intelectuais originais e que, por essa razão, deviam ser qualificados como “obras” na aceção do direito de autor.

A Cofemel, agora Ré, contestou alegando que os referidos modelos de vestuário não podem ser qualificados como “obras” na aceção do direito de autor, de forma que não estariam protegidos como tal.

O Tribunal português de primeira instância julgou a ação parcialmente procedente, condenando a Ré Cofemel a cessar a violação dos direitos de autor da G‑Star e a pagar a esta última uma quantia equivalente aos lucros que obteve com a venda do vestuário produzido em violação de direitos de autor.

A Cofemel, inconformada, interpôs recurso a o Tribunal da Relação de Lisboa que, por sua vez, confirmou o entendimento da primeira instância. A Cofemel interpôs, a seguir, recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal).

2. O órgão jurisdicional de reenvio, considerando

a) que os modelos de vestuário da G‑Star objeto do recurso de revista foram criados ou por designers que trabalhavam para a G‑Star, ou por designers a seu serviço;

b) que os modelos da G-Star objeto do recurso de revista são frutos de conceitos e de processos de fabricação reconhecidos como inovadores no mundo da moda,

c) que os modelos da G-Star comportam vários elementos específicos (efeito de três dimensões, esquema de montagem das peças, local de colocação de certos componentes, etc.) que, a seu turno, foram parcialmente reproduzidos pela Cofmel com vista à confeção do vestuário da sua marca,

salientou que, apesar do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos português incluir as obras de artes aplicadas, os desenhos ou modelos industriais no elenco daquelas criações que se beneficiam da proteção conferida pelo direito de autor, o diploma legal não especifica o grau de originalidade exigido para que as criações em questão possam ser qualificados como obras.

Somando a isto o fato de não haver uniformidade na jurisprudência e doutrina portuguesa quanto à questão, o Tribunal de Justiça propôs ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais

“1) […] [A] interpretação dada pelo TJUE ao [artigo] 2.°, [alínea] a), da Diretiva [2001/29] [opõese] a uma legislação nacional no caso, a norma constante do [artigo] 2.°, n.° 1, [alínea] i), do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC) — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design que, extravasando o fim utilitário que servem, gerem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, sendo a sua originalidade o critério central da atribuição da proteção, no âmbito dos direitos de autor[?]”

“2) […] [A] interpretação dada pelo TJUE ao [artigo] 2.°, [alínea] a), da Diretiva [2001/29] [opõese] a uma legislação nacional — no caso, a norma constante do [artigo] 2.°, n.° 1, [alínea] i), do CDADC — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design se, à luz de uma apreciação particularmente exigente quanto ao seu caráter artístico, e tendo em conta as conceções dominantes nos círculos culturais e institucionais, merecerem ser qualificadas como “criação artística” ou “obra de arte”[?]”

3. Em seu acórdão, Tribunal de Justiça da UE destacou que, nos termos do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (veja o documento aqui), os Estados‑Membros têm a obrigação de prever, em benefício dos autores, o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções das suas obras. Por outro lado, no que tange o conceito de “obra” na Diretiva em questão, lembrou constituir, conforme resulta de jurisprudência constante do próprio Tribunal, um conceito autônomo do direito da União, devendo ser interpretado de modo autônomo e uniforme e pressupondo, por fim, a consideração de dois elementos cumulativos, quais sejam

a) a existência de um objeto original, no sentido de que este é uma criação intelectual do próprio autor e

b) e que a qualificação como “obra” esteja reservada aos elementos que sejam a expressão dessa criação.

No que respeita ao primeiro elemento, o Tribunal frisou que, para que um objeto possa ser considerado original, é simultaneamente necessário e suficiente que reflita a personalidade do seu autor, manifestando escolhas livres e criativas deste último. Em contrapartida, quando a realização de um objeto tiver sido determinada por considerações técnicas, por regras ou por outras limitações, que não deixaram margem para o exercício de liberdade criativa aqui em pauta, não se pode considerar que esse objeto tenha a originalidade necessária para poder constituir uma obra na aceção do direito de autor.

No que respeita a qualificação de obra estar reservada aos elementos que sejam a expressão dessa criação, o Tribunal de Justiça da UE precisou que o conceito de “obra” visado pela Diretiva 2001/29 implica necessariamente a existência de um objeto identificável com suficiente precisão e objetividade. Reportando ao caso Levola, que já foi objeto de comentário no presente periódico (veja aqui), recordou que a identificação de tais elementos baseadas essencialmente em sensações, intrinsecamente subjetivas, da pessoa que apreende o objeto em causa, não será capaz preencher o requisito de precisão e de objetividade exigido.

Quando um objeto reúne os dois elementos, de forma que constitua uma obra, ele deve, nessa qualidade e em conformidade com a Diretiva 2001/29, se beneficiar da proteção conferida pelo direito de autor.

O Tribunal destacou, neste passo, que o alcance desta proteção não depende do grau de liberdade criativa de que o seu autor dispôs e, por conseguinte, que não é inferior à proteção de que beneficia qualquer obra abrangida pela referida diretiva.

Isto em conta, determinou que a resposta à primeira questão prejudicial requer determinar se, em geral, os modelos em questão podem ser qualificados como “obras”, na aceção da Diretiva 2001/29.

Destacou, então, que, apesar da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia determinar que a propriedade intelectual é protegida, de modo que os objetos que constituem propriedade intelectual se beneficiam da proteção conferida pelo direito da União, isto não significa que tais objetos ou categorias de objetos devam todos se beneficiar de proteção idêntica.

O legislador da União adotou diferentes atos de direito derivado com o objetivo de assegurar a proteção da propriedade intelectual, nomeadamente, por um lado, das obras protegidas pelo direito de autor, visadas pela Diretiva 2001/29, bem como, por outro, dos desenhos e modelos abrangidos pela Diretiva 98/71 (veja aqui) e pelo Regulamento n.° 6/2002 (veja aqui o documento). Esta opção legislativa, frisou o Tribunal, demonstra que o legislador da União considerou que os objetos protegidos ao abrigo de um desenho ou de um modelo não são, em princípio, equiparáveis aos que constituem obras protegidas pela Diretiva 2001/29. Essas proteções, frisou, são distintas e, de acordo com o Direito Europeu, não se excluem mutuamente.

Em consequência o Tribunal concluiu que os modelos podem ser qualificados de “obras”, na aceção da Diretiva 2001/29, no caso dos elementos cumulativos acima mencionados estarem presentes.

Nestas condições passou então a examinar a possibilidade de modelos como os de vestuário que, extravasando o fim utilitário a que servem, geram um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, poderem ser qualificados como obras na aceção da proteção autoral.

O Tribunal de Justiça da UE considerou que a proteção dos desenhos e modelos, por um lado, e a proteção conferida pelo direito de autor, por outro, perseguem objetivos fundamentalmente diversos e estão sujeitas a regimes distintos. Destacou que a proteção dos desenhos e modelos visa objetos que, embora sejam novos e individualizados, apresentam caráter utilitário e possam ser produzidos em massa. Além disso, esta proteção destina‑se a ser aplicada durante um período limitado, mas suficiente, para permitir rentabilizar os investimentos necessários à criação e à produção desses objetos sem, contudo, entravar excessivamente a concorrência. A seu turno, destacou, a proteção associada ao direito de autor, cuja duração é muito significativamente superior, é reservada aos objetos que merecem ser qualificados de obras.

Em conta essas diferenças e, ainda, com o respaldo nas Conclusões do Advogado-Geral (veja aqui o documento na íntegra), o Tribunal salientou que a concessão de proteção pelo direito de autor a um objeto protegido como desenho ou modelo não pode pôr em causa as finalidades e a efetividade respetivas destas duas proteções.

Disso entendeu decorrer que, embora a proteção dos desenhos e modelos e a proteção associada ao direito de autor possam, por força do direito da União, ser garantidas cumulativamente a um mesmo objeto, esta cumulação só poderá ser admitida nalgumas situações.

A este respeito, salientou que, por um lado, como decorre do sentido habitual do termo “estética”, o efeito estético suscetível de ser produzido por um modelo é o resultado da sensação intrinsecamente subjetiva de beleza vivida por cada pessoa que interage com o modelo. Por conseguinte, esse efeito de natureza subjetiva não permite, em si mesmo, caracterizar a existência de um objeto identificável com suficiente precisão e objetividade.

Em outros termos, não basta a presença do efeito estético (efeito subjetivo) para que o modelo possa ser caracterizado como obra na aceção do direito de autor. Pelo contrário, a caraterização como obra exige que o objeto em questão seja identificado de forma precisa e objetiva e que, ademais, represente uma criação intelectual, refletindo a liberdade de escolha e a personalidade do seu autor.

Daqui resulta que a circunstância de modelos, como os de vestuário em causa, gerarem, extravasando o fim utilitário a que servem, um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, não é suscetível de justificar que esses modelos sejam qualificados de obras na aceção da Diretiva 2001/29.

Neste contexto o Tribunal de Justiça, respondendo a primeira questão prejudicial, decidiu que o artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional confira proteção, ao abrigo do direito de autor, a modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal, pelo fato de, extravasando o fim utilitário que servem, gerarem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético. Por fim, atendendo à resposta dada à primeira questão, o Tribunal entendeu não ser necessário responder à segunda.

Comentário

1. Sob a perspectiva do Direito Europeu o acórdão em análise sedimenta o entendimento já desenvolvido pela jurisprudência europeia (vide, nessa linha, o acórdão proferido no caso Flos, C-168/09, aqui), no sentido de que basta que o modelo seja dotado de originalidade para que seja passível de proteção como obra na aceção do direito de autor. A determinação deste único critério de proteção ganha importância quando se tem em conta o fato de alguns dos diretos nacionais determinarem, para além da satisfação do critério da originalidade, que atendam outros critérios, como valor estético, por exemplo. Isto em conta entende-se a razão do Tribunal de Justiça ter frisado a autonomia do conceito jurídico europeu de obra que, a seu turno, exige um tratamento harmonizado em toda a EU.

Neste contexto haverá obra na aceção do direito de autor quando

a) houver um objeto original, no sentido de que é uma criação intelectual do próprio autor

b) e que a qualificação como “obra” esteja reservada aos elementos que sejam a expressão dessa criação.

O fato da qualificação como obra depender da possibilidade de identificação precisa e objetiva dos elementos que expressam a criação intelectual do autor afasta a possibilidade de considerar criações como obra, em relação às quais é apenas possível identificar um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético. Para ser obra é necessário mais do que isto.

Ao exigir mais do que o efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético o Tribunal, ao mesmo tempo que determina também ser o desenho industrial passível de proteção pelo direito de autor – evidentemente na hipótese de satisfação do critério da originalidade, oferece um critério voltado a evitar a banalização da proteção desenhada aos desenhos industriais.

Essa preocupação vem expressa, por exemplo, nos seguintes trechos das Conclusões do Advogado-Geral Maciel Szpunar onde, ademais, as distinções entre os regimes jurídicos, são destacadas:

  1. Por um lado, o caráter utilitário e funcional dos objetos de artes aplicadas e a sua vocação para serem produzidos industrialmente em massa permitem duvidar da sua aptidão para serem protegidos pelo direito de autor e da conformidade dessa proteção com os seus fundamentos axiológicos (a relação pessoal entre o autor e a sua obra) e com os seus objetivos (a remuneração do esforço intelectual criativo). A proteção dos desenhos e modelos pelo direito de autor comporta, nomeadamente, dois tipos de riscos: a inflação da proteção pelo direito de autor e o entrave à livre concorrência económica (5). Por essa razão, numerosas ordens jurídicas desenvolveram dispositivos destinados a reservar a proteção pelo direito de autor aos desenhos e modelos que apresentem elevado valor artístico. Pode citarse a doutrina da «scindibilità», em direito italiano, a «Stufentheorie», em direito alemão, ou a limitação da duração da proteção para os objetos produzidos à escala industrial, no direito do Reino Unido (6).
  1. Com efeito, uma proteção sui generis dos desenhos e modelos, como a prevista pelo Regulamento n.o 6/2002, adequase à especificidade desses objetos de proteção, isto é, objetos utilitários correntes e produzidos em massa que, no entanto, também podem ter algumas características estéticas originais dignas de proteção. Esta proteção tem uma duração suficiente para permitir rentabilizar o investimento que é constituído pela elaboração do desenho ou modelo (42), sem, contudo, entravar excessivamente a concorrência. Do mesmo modo, as condições de obtenção dessa proteção, com base na originalidade e na novidade, bem como o critério que serve para determinar que existe um ato de contrafação, que é o da impressão visual global (43), são adaptados à realidade dos mercados destes objetos.
  1. No entanto, embora seja demasiado fácil obter, para o mesmo objeto, a proteção pelo direito de autor, que está dispensada de qualquer formalidade, que se aplica desde a criação do objeto e sem condição de novidade e cuja duração é praticamente infinita no que se refere à utilidade de um desenho ou modelo para o seu proprietário (44), existe o risco de o regime do direito de autor excluir o regime sui generis destinado aos desenhos e modelos. Ora, essa exclusão teria vários efeitos negativos: a desvalorização do direito de autor, solicitado para proteger criações, de facto, banais, o entrave à concorrência em virtude da duração excessiva da proteção ou ainda a insegurança jurídica, na medida em que os concorrentes não estão em condições de prever se um desenho ou modelo cuja proteção sui generis expirou não está igualmente protegido pelo direito de autor.

2. O Acórdão em análise tem o mérito de sedimentar, como mencionado, o requisito de proteção da originalidade como o único relevante para o direito autoral europeu e, especialmente, de salientar os riscos vinculados à banalização da proteção aos desenhos autoral. Restou, porém, nebuloso, como determinar e distinguir a originalidade, que justificará a proteção autoral, do (mero) efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético.

Insistindo neste aspecto e recorrendo ao seguinte trecho das Conclusões do Advogado-Geral

  1. Por outro lado, alguns objetos de artes aplicadas têm indiscutivelmente um elevado grau de originalidade. Basta pensar nos estilos desenvolvidos neste domínio, como a Art déco ou a Bauhaus. O mesmo se diga do setor de atividade em causa no presente processo, ou seja, o vestuário: as peças da alta costura são tanto — se não mais — obras de arte como vestuário. (…)

é legítimo questionar se o critério para que a criação intelectual seja considerada obra na aceção do direito de autor estaria vinculado ao fato de ser possível indentificá-lo a um estilo ou escola de arte ou, no caso dos designs de vestuário, classificá-lo como de “alta costura”?

Efetivamente, sugere-se a adoção de uma perspectiva multidisciplinar para auxiliar a apuração da originalidade nas criações intelectuais, isto é, de especial consideração de seus potencial e funcionalidade comunicativos. Especificamente no que toca a proteção do desenho (design) de peças de vestuário, aproveita-se a análise do Acórdão em questão para, adotando a perspectiva sugerida, distinguir o critério da originalidade do (mero) efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético.

3. O caso em análise toca o desenho ou design de moda, isto é, da criação estética aplicada ao vestuário (ou peça de vestuário).

Ao contrário da forma como é empregada usualmente, a expressão moda não reporta, sob uma perspectiva sociológica, diretamente às peças de vestuário, mas antes a padrões (ou códigos) comunicativos aprovados socialmente. As palavras “aprovados socialmente” foram destacadas uma vez que seu significado é central para o raciocínio a ser desenvolvida a seguir: a aprovação social é um aspecto essencial da definição de moda e, pela negativa, a reprovação social de um padrão comunicativo fará impossível falar-se em moda.

Ilustrando o que se postula e, para tanto, lançando mão de estudo de autoria de LOSCHEK (LOSCHEK, Ingrid. Wann ist Mode? Strukturen, Strategien und Innovationen, Dietrich Reimer Verlag, Berlin, 2007, recorre-se à coleção de Rei Kawakubo denominada “Body meets dress, dress meets body”, lançada em 1997 (veja aqui, no site da revista Vogue, outros modelos da linha da estilista). A estilista, como pode ser visto no modelo abaixo, exposto no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova Iorque, lançou mão da aplicação de almofadas em seus vestidos, criando silhuetas deformadas (vide a fonte da foto aqui).

Com o recurso aos enchimentos visava oferecer uma nova dimensão de percepção do corpo. Neste sentido propôs à coletividade a composição como um novo padrão comunicativo que, a seu turno, não foi aprovado socialmente, não incorporando o conceito de moda, o que é possível afirmar frente às críticas dos estilistas e da indústria de vestuário que compararam os enchimentos a  “tumores” e, especialmente, ao fato do recurso aos enchimentos não ter se tornado um padrão de vestuário nos fins do século passado.

4. Se bem compreendido o conteúdo comunicativo a que reporta a expressão moda, então é possível depreender não ser o estilista quem cria a moda. Estilistas criam composições de peças de vestuário. Eles poderão, por meio de suas composições, propor novos padrões comunicativos. Esses padrões propostos estão sujeitos a aprovação social, no que, só então, passam a ser vinculados com a ideia de moda.

No mesmo sentido a moda também não é criação da indústria de vestuário, de forma que não há “indústria da moda”. Muito pelo contrário, a indústria geralmente atua no âmbito dos padrões já aprovados socialmente, posto a aprovação anterior resultar em determinado grau de segurança em relação ao risco vinculado aos investimentos de capital.

Por fim, a proposição de novos padrões comunicativos não é característica necessária da composição de peças de vestuário. Sem ignorar os traços de preocupação estética, grande parte das composições oferecidas ao mercado pela indústria de vestuário é produzida em observância a padrões já aprovados socialmente. Em outros termos, essas composições “seguem” a moda, ao invés de “fazerem moda”.

Tomando o aspecto “elemento comunicativo” como ponto de referência de definição de moda, identifica-se, neste passo, um sistema funcional moda, caracterizado como autorreferencial, organizado e reproduzido pela dinâmica interna de seus próprios elementos constitutivos (veja a Teoria Geral dos Sistemas de Luhmann).

5. Considerando o exposto e invertendo a perspectiva até agora adotada, partindo, então, da peça de vestuário para, então, relacioná-la com o sistema moda, detecta-se duas situações distintas:

a) a composição da peça de vestuário apresentada pretende expressar um padrão estético-comunicativo diferente daqueles vigentes no momento. A palavra-chave aqui é transformação;

b) a composição, apesar de apresentar efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, corresponde – isto é, é produzida em atenção – aos padrões válidos no momento. A palavra-chave aqui é adequação.

Quando o Advogado-Geral no caso em análise fez referência às peças da alta costura que “são tanto — se não mais — obras de arte como vestuário”, se referia àquelas que expressam novos padrões estético-comunicativos. Neste âmbito, as criações não raro são percebidas como exorbitantes, ousadas, provocativas, bizarras ou até mesmo chocantes, como no caso da peça de vestuário da estilista Rei Kawakubo acima reproduzida. Mais do que uma peça de vestuário, o vestido da ilustração cumpre com função de expressão iconográfica (=comunicação por meio de linguagem simbólica). Este tipo de criação, fomentando a reflexão reflexivo transformadora (sobre esse tipo de reflexão vide aqui) é qualificada como original e a proteção que lhe cabe é aquela garantida pelo direito de autor.

Na outra ponta, composições adequadas a padrões já propostos e socialmente aceitos, como poderá ser o caso das peças de vestuário da G-Star, não estão voltadas a propor novos padrões estético-comunicativos, não cumprindo, dessa forma, com função primordial de expressão iconográfica e, portanto, não permitindo serem caraterizadas como originais na aceção do direito de autor, mesmo e apesar de apresentarem  um visual próprio e marcante do ponto de vista estético.


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), WürtenbergerKunze Rechtsanwälte, Munique, Alemanha.


Foto: https://www.moma.org/audio/playlist/43/702


ISSN 2509-5692

 

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